Marcada pelos pedidos de cura e pelo sincretismo, Festa de São Lázaro ocorre neste domingo (28)

A Festa de São Lázaro é celebrada todo ano no último domingo de janeiro, na Igreja de São Lázaro e São Roque, na Federação. Muito além das missas e da tradicional procissão, ela está, ao lado da Lavagem do Bonfim e da Festa de Santa Bárbara, entre as celebrações de maior sincretismo religioso de Salvador, fundindo visões distintas em busca do bem comum. A celebração, que acontece neste domingo (28), resume uma preparação festiva de três dias – o tríduo – e remete a santos de cura, entidades às quais se atribuem melhoras de saúde, relação aos pedidos de bênçãos e agradecimentos por graças alcançadas.

Um desses casos é o recorte da vida da Ialorixá Tania Pereira de Jesus, de 57 anos, de nação ketu e com 50 anos de feitura de santo. Independentemente de sua hierarquia religiosa, há oito anos ela oferta banhos de pipoca em frente à Igreja de São Lázaro. A prática teve início por orientação dos orixás, em virtude de um problema de saúde que acometeu a neta Maria Eduarda, a Madu, hoje com 13 anos e completamente curada.

“Comecei o banho de pipoca no mês de agosto, época da festa de São Roque, pois, na última semana de julho, minha neta apresentou um problema de saúde. Conversei com os orixás, avisando que daria banhos de pipoca em frente à igreja. Fui para a igreja com um balaio de pipoca. No mesmo dia, ganhei mais um quilo de milho. Isso deixou subentendido para mim que teria de voltar ao local. E foi o que fiz. Quando veio a festa de São Roque, ganhei uma saca de milho, que distribuí com a minha neta. Dali em diante, entendi que tinha que continuar este trabalho, também durante a festa de São Lázaro”, afirma.

Para a Ialorixá, a festa de São Lázaro é emocionante. “Tenho uma boa convivência com os padres, podendo até mesmo entrar na igreja na hora do ofertório, com o balaio de pipoca e o incenso. São Lázaro e São Roque são santos que nossos ancestrais foram inteligentes em associar aos orixás, para cultivar e reverenciar de forma escondida, como era possível na época. Neste caso específico, tratam-se de dois santos que preservam a saúde das pessoas, sendo médicos do povo e protetores contra as enfermidades”, lembra.

Dois mundos – Enquanto no templo religioso a comunidade participa das três missas diárias, no entorno da igreja pessoas de todos os credos celebram acendendo velas, distribuindo flores, pós de cura e proteção, banho de pipoca, dentre outras, vendendo ou doando artefatos que ora remetem a São Lázaro, ora a Omolu/Obaluaê, conforme o sincretismo com o candomblé – que em algumas casas são tratados como o mesmo orixá, e em outras como entidades distintas.

Pároco da igreja e há quatro décadas envolvido com a festa, o missionário polonês Casimiro Malolepszy está em sua terceira passagem no santuário. Ele explica que a propriedade em que a ermida de São Lázaro foi erguida integrava uma espécie de entreposto comercial no Século XVIII que recebia parte dos africanos escravizados que chegavam à colônia. Como muitos deles chegavam debilitados pelos maus tratos, recebiam os primeiros cuidados ali mesmo, sob a benção e proteção do orago da casa sagrada.

“Obviamente que, durante esta viagem tão longa, muitos ficavam doentes, então aqui eram mantidos para não contaminar ninguém. Logo, entende-se que este foi o primeiro hospital para esses escravos. Justamente por conta dessa ligação com os escravizados trazidos da África, e também pela história de sofrimento do próprio Lázaro, como relatada no evangelho de Lucas, que as pessoas se identificam com a igreja e sua história”, explica Malolepszy.

A festa – Composta por missas, procissões e a manifestação pública, a Festa de São Lázaro tem celebrações internas com missas às 9h, 11h e 13h, além de uma missa solene às 15h, seguida de procissão até a região do cemitério do Campo Santo, retornando ao templo religioso para o encerramento da parte religiosa com a benção do Santíssimo Sacramento. Lá fora, mães, pais e filhos de santos – além de adeptos, turistas e simpatizantes -, realizam os atos referentes à lavagem das escadarias, banhos, distribuição de passes e bênçãos referentes ao sincretismo com Omolu/Obaluaê.

“É algo que já faz parte da história e tradição, que acolhemos com muito carinho. É preciso salientar que, no tempo do tráfico de escravos, eles chegavam aqui com suas crenças próprias, toda uma religiosidade, e muitas vezes não eram catequizados, pois havia um conceito de que não era preciso catequizar os negros, apenas os índios. Então, por conta disso, eles foram associando as crenças, os santos e os orixás, e temos o que temos hoje, com toda essa festa do lado de fora”, destaca o pároco.

Sob o tema “São Lázaro: Amizade Social”, a festa deste ano faz essa referência à campanha da fraternidade de 2024. “Dessa forma, realmente entendemos São Lázaro como aquele que, em seu primeiro momento, foi rejeitado porque vivia simplesmente como um mendigo. Em um segundo momento, temos um Lázaro acolhido pela comunidade, em clara alusão às diversas tentativas que vemos hoje de superar as grandes diferenças sociais, realizadas pelas várias organizações pastorais e mesmo aquelas não religiosas, em busca de vencer ou, pelo menos, de amenizar esta injustiça”, lembra o religioso.

De acordo com o padre Casimiro, no imaginário popular São Lázaro surge como aquele que é acolhido e tem algo para revelar através das suas chagas, suas feridas, suas roupas rasgadas, o cachorro que lambe as feridas. Considerado protetor de idosos, leprosos e dos animais enfermos, no candomblé, São Lázaro também é sincretizado com Omulu/Obaluaê, o orixá da medicina que cuida dos doentes crônicos. Em estatuetas e pinturas, é geralmente representado por um homem velho, portando um cajado como muleta e vestindo trajes velhos nas cores roxa e marrom, que simbolizam sofrimento e penitência, respectivamente.

Segundo o historiador Murilo Melo, São Lázaro sempre foi muito procurado em Salvador, inclusive durante a pandemia da Covid-19, que castigou a cidade recentemente. “Ele sempre foi muito venerado e considerado muito importante para a sociedade e para a cidade. A Igreja de São Lázaro está localizada em um ponto muito bonito da cidade. E, ao longo do tempo, tem início o festejo de São Lázaro. Entretanto, não se comemora apenas São Lázaro nesta data. Por conta de toda a história junto aos escravos, os devotos passaram a sincretizar o santo curandeiro com um similar do candomblé, criando essa associação com Omolu”, diz.

“Nos períodos históricos onde a cidade passou por enfermidades coletivas, principalmente nos períodos de pandemia, como as ocorridas no século XIX, quando Salvador passou por um surto de cólera de 1855, onde a devoção a Omolú e São Lázaro se fizeram presentes. E assim acontece desde então, seja com os festejos externos, ou no tríduo, nas missas e em toda essa diversidade religiosa, que conta com a participação de pessoas de todas as classes sociais. Tudo isso é muito significativo e interessante”, relata Murilo Melo.

Relatos – Assim como ocorre no Bonfim, a devoção na Igreja de São Lázaro conta com uma sala de ex-votos, voltada para a cura dos enfermos e dos animais. Da mesma forma, o local contempla a chamada “Capela dos milagres”, onde as pessoas depositam símbolos, objetos que demonstram o resultado da cura, da mesma forma que ocorre na Colina Sagrada, embora aconteça com uma expressão popular um pouco menor.

Murilo Melo lembra que São Lázaro sempre foi representado como um santo sem teto, comparado a um mendigo, com feridas no corpo, sendo procurado para realização da limpeza do corpo e da alma, sendo uma representação significativa no candomblé, a partir dos orixás Omolu e Obaluaê, com o corpo coberto de palha, cujas chagas do corpo ficam ali escondidas, sob a forma das entidades.

“Tanto Omolu quanto São Lázaro são marcados pelo desamparo, lembrando a mendicância do personagem da parábola bíblica na casa dos mais abastados, lembrando o abandono e que, na morte, todos se igualam, pois na morte não há mais espaços para ricos ou pobres, sendo que todos terminam no mesmo lugar. Já a narrativa de matriz africana fala que Omulu foi abandonado pelos pais, por ter nascido com o corpo cheio de feridas, quando ele é salvo por Iemanjá utilizando folhas de bananeira. Por isso mesmo, na representação física ele surge com aquela roupa de palha, capuz, búzios e demais acessórios”, destaca Murilo.

Programação – A festa tem início às 6h do domingo (28), com uma alvorada de fogos. As missas acontecem às 7h, 9h e 11h. Já às 15h acontece uma missa solene seguida, às 16h, de uma procissão. Às 18h acontece a bênção do Santíssimo Sacramento. Antes, no sábado (27), às 11h, acontece a lavagem das escadarias, tudo isso alinhado à participação popular.

Fotos: Bruno Concha / Secom PMS