A coalizão de esquerda Nova Frente Popular (NFP) surpreendeu no segundo turno das eleições legislativas francesas, neste domingo (7), e tornou-se o maior bloco parlamentar em uma França partida em três. O pleito foi marcado pela ascensão da ultradireita, pelo forte comparecimento às urnas (67%, o maior desde 1981) e pelo temor de quebra-quebra.
Com quase 100% da apuração (falta apenas a contagem dos votos no exterior), a NFP somava 181 assentos na Assembleia Nacional, seguida pela coalizão Juntos, do presidente Emmanuel Macron, com 166 cadeiras, e pela antes favorita Reunião Nacional (RN), de ultradireita, com 143 deputados. Antes, esses blocos tinham, respectivamente, 150, 250 e 89 assentos. Outros partidos de direita ficaram com 60 cadeiras; outros de esquerda, com 13 vagas.
Na nova composição da Assembleia Nacional, portanto, nenhum dos grupos nem sequer se aproximou da maioria absoluta de 289 dos 577 deputados, o que implica a necessidade de alianças ao menos pontuais para o próximo governo e ameaça criar um impasse político na França, a duas semanas do início das Olimpíadas de Paris.
Macron não se pronunciou oficialmente até a última atualização deste texto. Segundo assessores, o presidente aconselhou prudência à esquerda. Seu pupilo, o atual premiê Gabriel Attal, 35, anunciou renúncia.
O segundo turno da eleição foi marcado por mais de 200 desistências de candidatos de esquerda em favor de candidatos do centro, e vice-versa, para tentar impedir a vitória de rivais de ultradireita. Essa manobra é conhecida como “frente republicana” —e teve sucesso nesta votação.
Os números surpreendem pela quantidade de assentos maior que a prevista para a bancada do centro governista e permitem prever que a esquerda indicará o sucessor de Attal.
Há ainda, no entanto, indecisão sobre qual será o nome sugerido. Há muitas disputas internas na NFP. Jean-Luc Mélenchon, 72, é o líder do maior partido da frente, a França Insubmissa. Mas é visto como radical demais por muitos. Seu discípulo Manuel Bompard, 38, mais moderado, é uma opção.
Outras possibilidades seriam Olivier Faure, 55, líder do Partido Socialista, e a ecologista Marine Tondelier, 37, que ganhou prestígio durante a campanha. O intelectual Raphaël Glucksmann, 44, filho do renomado filósofo André Glucksmann (1937-2015), teve um bom desempenho na eleição para o Parlamento Europeu, em junho, mas seu grupo é minoritário na NFP.
Mélenchon foi o primeiro a se pronunciar. Sem chegar a pleitear explicitamente o cargo de primeiro-ministro, pediu a renúncia de Attal —que a anunciou horas depois— e descartou coalizão com os macronistas. “Saúdo aqueles que se mobilizaram, porta a porta, para convencer e arrancar um resultado que diziam impossível. Nosso povo descartou a solução do pior. É um alívio para a maioria das pessoas em nosso país”, disse Mélenchon.
Ele também defendeu a revogação da reforma das aposentadorias imposta em 2023 por Macron, passando a idade mínima, de modo geral, de 62 para 64 anos. “Recusamos entrar em negociação com o partido do presidente para fazer alianças, sobretudo depois de ter combatido sem descanso há sete anos sua política abuso social e de inação ecológica”, afirmou o líder.
Mélenchon é uma figura controversa mesmo na esquerda. É acusado de extremismo e até de antissemitismo, devido à sua posição pró-Palestina em relação ao conflito em Gaza. Ele nega ser antissemita.
O presidente da RN, Jordan Bardella, afirmou após a divulgação das pesquisas de boca de urna que Macron e Attal “jogaram a França nos braços da extrema esquerda”. “Privaram a França de qualquer resposta a suas dificuldades cotidianas. Os arranjos eleitorais entre um presidente isolado e uma extrema esquerda incendiária não levarão o país a lugar algum. A pergunta é: o que eles vão fazer? Mas um vento de esperança surgiu e ele nunca mais vai parar”, disse Bardella, que, se o favoritismo da RN tivesse se confirmado, seria o mais provável nomeado pelo partido ao cargo de primeiro-ministro.
Marine Le Pen, madrinha política de Bardella e adversária de Macron na eleição presidencial, afirmou que o atual líder está “em uma situação insustentável e vai ter que administrar a situação que impôs aos franceses. “A maré está subindo. Não subiu o bastante desta vez, mas continua subindo. Nossa vitória, na verdade, foi adiada”, disse ela em referência pouco velada à próxima disputa pelo Palácio do Eliseu.
A possível chegada da ultradireita ao poder, pela primeira vez desde o regime colaboracionista com o nazismo, na Segunda Guerra Mundial, elevou a tensão política na França nas últimas semanas. Houve episódios ocasionais de violência. A porta-voz do governo, Prisca Thevenot, e auxiliares foram agredidos esta semana quando colavam cartazes.
O medo levou muitos comerciantes a protegerem suas vitrines com tapumes e barreiras, inclusive na Champs-Elysées, a avenida mais famosa de Paris. Viralizou um vídeo mostrando a instalação de proteção na fachada da loja da marca de luxo Louis Vuitton.
O Ministério da Justiça havia anunciado um contingente excepcional de 30 mil policiais nas ruas francesas, devido ao temor de vandalismo. Após a divulgação das primeiras projeções com a vitória da esquerda, tumultos foram registrados em grandes centros urbanos, como Paris, Nantes, Lyon e Rennes.
O pleito foi convocado no início de junho por Macron, após o mau resultado do governo nas eleições para o Parlamento Europeu. A decisão de dissolver a Assembleia Nacional causou perplexidade, uma vez que ele possuía uma maioria relativa de 250 deputados até o final de seu mandato, em 2027.
O primeiro fim de semana das férias escolares de verão na França teve uma diferença importante em relação aos anos anteriores. Os franceses pegaram a estrada, mas 3,3 milhões dentre eles deixaram para trás votos por procuração para o segundo turno. Na França, votar é facultativo, mas é permitido autorizar outra pessoa a depositar sua cédula na urna.
O número recorde de votos por procuração —quatro vezes maior que na eleição anterior, em 2022— era um indicador do grande interesse despertado por este pleito fora de época.
Nos últimos dias, centenas de intelectuais, artistas, jornalistas e esportistas se pronunciaram publicamente em favor da frente republicana. A reportagem ouviu algumas dessas personalidades esta semana na place de la République, tradicional ponto de manifestações políticas na capital francesa.
O jornalista Edwy Plenel, ex-diretor de redação do jornal Le Monde e fundador do site de jornalismo investigativo Médiapart, qualificou de irresponsável a decisão de Macron de dissolver a Assembleia Nacional e convocar a eleição, no início de junho.
“A oposição [de esquerda] não teve tempo de se organizar de verdade. [Macron] é como um juiz de futebol que diz ao time que ganhou uma partida: segue o jogo, a bola está no seu pé, pode fazer outro gol. E é bem possível que a extrema-direita faça esse gol”, comparou Plenel.
Para ele, o risco é que chegue ao poder um grupo político “apoiado pelo imperialismo russo, um regime neofascista que apoia madame Le Pen”. Ele se refere à líder da RN, Marine Le Pen, 55, que declarava publicamente sua admiração pelo líder russo, Vladimir Putin, até a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.
Plenel advertiu para o risco de, além de Rússia e China, dois outros membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas —França e EUA— passarem a ter governos antidemocráticos, em caso de vitória do partido de Le Pen na eleição legislativa francesa e do republicano Donald Trump na eleição presidencial americana, em novembro.
Julia Cagé, uma das economistas mais respeitadas da França, disse à reportagem que a vitória da RN seria “catastrófica sob todos os pontos de vista”.
“Veja o que aconteceu no Brasil com Bolsonaro”, afirmou Cagé, autora de um livro sobre a história eleitoral francesa, escrito com o marido, Thomas Piketty, outro economista de renome. “Será um desastre para a universidade, para a liberdade de pensamento, para a independência da mídia, para os direitos das mulheres.”
Alguns jogadores da seleção francesa de futebol masculino, atualmente disputando a Eurocopa na Alemanha, conclamaram os eleitores a votar contra a ultradireita. Entre eles, o maior ídolo da França, Kylian Mbappé, e o atacante Marcus Thuram.
O pai de Marcus é Lilian Thuram, campeão mundial com a França em 1998 e conhecido pelo engajamento político. À reportagem, Lilian disse se orgulhar do posicionamento do filho. “Na minha época, Jean-Marie Le Pen [pai de Marine e fundador da RN] já dizia que na seleção francesa havia jogadores demais com a pele negra. Não há nada de novo. A ideia da RN é dizer que, se você não é branco, você não é totalmente francês”.
André Fontenelle/Folhapress / Foto: Emannuel Dunand/AFP