“Ninguém quer reabrir o país mais do que Donald Trump.” A avaliação do vice-presidente Mike Pence feita nesta semana reflete a pressão do presidente para retomar as atividades nos EUA a partir de maio, menos de dois meses após ter colocado o país sob orientações rigorosas de distanciamento social.
A previsão tem preocupado especialistas de saúde dentro e fora do governo, que acreditam que a reabertura precoce e sem planejamento -mesmo que apenas em estados que não apresentem surto, como defende Trump- pode causar uma segunda onda de transmissões no país.
Estudos apontam para um pico de novas infecções caso as restrições acabem, por exemplo, em 30 dias.
Professor de epidemiologia e saúde global da Universidade de Michigan, Arnold Monto concorda que há uma melhora na curva dos EUA, mas pondera que o país tem proporções continentais e que os níveis de transmissões são diferentes em cada região. Por mais que seja possível retomar atividades em um determinado estado, explica, não há estrutura suficiente para mantê-lo controlado agora.
“Temos que reabrir o país quando percebermos que há menos transmissão, e isso é um problema porque não temos testes suficientes para isso hoje. Precisamos evitar uma segunda onda de transmissão, que pode acontecer com a retomada das viagens, por exemplo.”
Os EUA suspenderam os voos de mais de 30 países, incluindo os da Europa, China e Irã. Com mais de 491 mil casos confirmados e 18 mil mortes até esta sexta-feira (10), os americanos são líderes em diagnósticos e devem assumir logo também a frente no número de vítimas da pandemia, que já atingiu mais de 1,6 milhão de pessoas no mundo todo.
Apesar da escalada, dados utilizados pela Casa Branca como diretriz para as projeções apresentaram um cenário mais otimista nos últimos dias, no qual Trump fez questão de se ancorar.
O presidente disse nesta sexta que criaria uma força-tarefa no governo dedicada somente à retomada econômica nos EUA, mas prometeu seguir ouvindo a ordem dos especialistas de sua equipe.
Um deles estava ao seu lado na hora do anúncio. Anthony Fauci, diretor do Instituto de Doenças Infecciosas dos EUA, afirmou que, apesar do progresso, não é possível relaxar as medidas “de maneira nenhuma.”
Um dia antes, porém, Fauci havia dito que a reabertura poderia se dar por setores e de forma gradual.
As previsões para o total de mortes no país até agosto foram revisadas de 100 mil a 240 mil para cerca de 60 mil, segundo o IHME, instituto de métrica da Universidade de Washington.
A expectativa para a necessidade de leitos hospitalares e de UTI também despencou, apesar de hospitais em todo o país relatarem cenários de guerra e escassez de recursos que vão desde respiradores até luvas e máscaras.
“Estamos no topo da montanha. Felizmente, vamos reabrir [o país] muito, muito em breve”, disse Trump a partir dos novos dados.
Segundo Ali Mokdad, epidemiologista do IHME, o que garantiu as mudanças na métrica foi o cumprimento das regras de distanciamento social -cerca de 95% dos americanos estão sob alguma medida de restrição e as orientações em nível nacional vão pelo menos até 30 de abril.
Sem vacina e tratamento, diz Mokdad, o consenso científico é que o distanciamento é a chave para o achatamento da curva.
“Se mais americanos fizerem o distanciamento, podemos baixar mais o número de mortes”, disse à Fox News.
As pressões de Trump desencadearam uma série de declarações e ações de governo. O presidente tem medo que as consequências econômicas da pandemia -16 milhões de americanos já pediram acesso ao seguro-desemprego e 73% dizem que sua renda diminuiu com a crise- prejudiquem sua campanha à reeleição.
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês) divulgou diretrizes para que pessoas que foram expostas ao coronavírus, mas não apresentam sintomas, continuem trabalhando.
O secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, por sua vez, foi à TV endossar as previsões de Trump de que é possível reabrir algumas atividades do país em maio.
Estudos mostram que, após as medidas rigorosas de distanciamento social, é preciso entrar em uma espécie de fase dois do combate à pandemia, com o relaxamento das restrições acompanhado da implementação dos testes e da vigilância em larga escala.
“Se virmos a transmissão voltando, temos que ser capazes de identificar as pessoas e colocá-las em quarentena”, explica Monto, de Michigan.
Fora os obstáculos políticos para o governo controlar a circulação dos cidadãos, especialistas apontam para desafios práticos: a retomada será setorizada, o comércio deve restringir o número de clientes in loco e a volta ao trabalho, em muitos casos, deve ser de forma escalonada e em turnos para evitar aglomerações.
As projeções usadas pela Casa Branca mostram que, a partir da semana que vem, o número de mortes diárias deve começar a cair, mas ainda permanecerá entre mil e 2.000 até 30 de abril.
A taxa seria zerada apenas em agosto, mas o número de mortes é sabidamente um indicador atrasado sobre o nível de transmissão, já que muitas pessoas morrem dias ou até semanas depois de serem infectadas.
O primeiro caso confirmado de Covid-19 nos EUA foi em 21 de janeiro. Trump declarou emergência nacional 52 dias depois, em 13 de março, e implementou as orientações de distanciamento social em 16 de março.
Na primeira semana de fevereiro, os diagnósticos no país se mantiveram na casa da dezena, pulando para mais de 600 na primeira semana de março e, em abril, já extrapolaram os 486 mil.
Estados como Nova York e Nova Jersey são o epicentro da pandemia, enquanto Califórnia e Washington começam a ver progresso em seus índices.
O atraso nos testes e o momento de adoção das medidas restritivas são vistos como alguns dos fatores que definem as situações nos estados.
Se Trump decidir colocar em marcha seu plano a partir de maio, cada estado poderá decidir o que fazer –no sistema federativo americano, cada um deles tem a sua própria constituição.
A ideia que une especialistas é que o alívio só virá com a descoberta de uma vacina ou tratamento eficaz contra a doença. Mas a normalidade que espera Trump, essa será difícil.
O comportamento da maioria das pessoas foi reformulado e deve ter impacto para os tempos que devem vir pós-pandemia.
Fonte: Folhapress