A canção “A bota”, mais nova composição do cantor e compositor, Carlinhos Brown , pode ser interpretada como uma reação criativa à morte do afro-americano George Floyd, caso que incendiou os Estados Unidos e provocou reações no mundo inteiro. A obra é fruto de uma parceria com Guilherme Menezes.
Além de inserir referências ao episódio de Minneapolis, como algumas das últimas palavras de Floyd, Brown compôs um arranjo que confere força suficiente para a música esquentar ainda mais o debate sobre racismo pelo caminho da arte. O clipe de lançamento mescla cenas do cantor no estúdio, imagens de escravos em senzalas brasileiras e cenas dos protestos recentes nas cidades norte-americanas, num ritmo sincopado que lembra rodas de capoeira.
Parceria – De quebra, Carlinhos Brown devolve à música baiana, um compositor que, numa dessas encruzilhadas da vida, interrompeu a carreira artística para entrar na política. Guilherme Menezes era mais um cabeludo dos anos 1960, rebelde à sua maneira ensimesmada, quando resolveu deixar sua Iguai para tentar a sorte no eixo Rio-Sampa. Fez o mesmo caminho de outros baianos daquela época. Andando pelas ruas de São Paulo, observando o vai-e-vem frenético das pessoas no Centro, converteu em música o que bem poderia ser uma crônica de cotidiano sobre as múltiplas personagens que cruzam o conhecido Viaduto do Chá.
“Viaduto do Chá” é uma das canções reunidas no disco Velhas Histórias, produzido e organizado por um amigo e também músico. Nagib Barroso, amigo de infância e parceiro de Luiz Caldas, foi sequestrado por Guilherme da música para a política.
Por timidez ou obra do acaso, Guilherme voltou do sul sem ainda alcançar o sucesso de outros compositores da sua geração. Embrenhou-se no interior de Conquista como professor e foi colecionando mais imagens e personagens nas suas vivências. Formou-se médico e só aos 49 anos encarou as urnas pela primeira vez. E na política, assim como na música, conservou uma timidez ensimesmada como marca. “É o jeito dele”, atesta Nagib.
No disco já disponível em todas as plataformas digitais, há outras composições com a mesma verve do compositor-observador de pessoas e lugares, tradutor de raciocínios complexos em versos aparentemente simples. Em “Zé Pulú”, interpretada no disco por Xangai, conta a história de um doido que reage violentamente à violência de um coronel, quando essas figuras mandavam e desmandavam no Sertão da Ressaca, região onde está Vitória da Conquista. “Aquilo não é música de prefeito, é composição de compositor de verdade”, comentou Elomar, quando ouviu “Zé Pulú”.
“Velhas histórias” foi produzido quase às escondidas, com a ajuda da esposa Josete Menezes, cúmplice de Nagib no projeto. Secretário de Cultura no último dos quatro mandatos de Guilherme como prefeito da terceira maior cidade baiana, Nagib terminou congelando a própria carreira de cantor e compositor quando foi trabalhar na Prefeitura.
Apesar da concentração quase absoluta nos quatro mandatos de prefeito e dois de deputado estadual e federal, Guilherme continuou compondo solitariamente e sem divulgar. “O artista quando mostra sua arte, é por vaidade, quando esconde, também”, atiçava Nagib, diante da resistência de Guilherme em dar vazão ao compositor.
Depois de encerrar a carreira política, Guilherme Menezes se reencontra com a música, ao lado de Nagib Barroso, que o aproximou de Carlinhos Brown e Luiz Caldas. Luiz se encantou com a poesia de Menezes, admirador e conhecedor da obra do poeta Manoel de Barros e incluiu “A chave” no seu próximo disco.
Antes disso, no calor de uma semana em que duas mortes de negros, Floyd em Minneapolis e o menino Miguel, no Recife, Brown, com “A bota”, abre esse baú, de onde certamente sairão muitas obras de um compositor de 77 anos que a Bahia ainda não conheceu.