Recontar mortos de Covid-19 será tiro no pé do governo, diz cientista da Fiocruz

Um estudo da Fiocruz mostra que, só nas capitais que concentram os maiores registros de óbitos por Covid-19, o número de casos ocultos e não diagnosticados da doença pode ser explosivamente maior do que o daqueles confirmados.

“A declaração do Ministério da Saúde, de que pretende recontar as mortes e verificar se ocorreram mesmo por Covid-19, seguramente vai mostrar o contrário do que o governo [de Jair Bolsonaro] diz suspeitar [que os óbitos ocorreram por outras doenças]”, afirma o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz de Manaus. Segundo estudos feitos por ele, o número de vítimas pode ser muito maior do que o até agora computado.

Na sexta (5), o empresário Carlos Wizard, novo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, disse que o ministério deve recontar o número de mortes causadas pelo novo coronavírus porque eles seriam “fantasiosos ou manipulados”. O executivo não apresentou provas para sustentar a afirmação.

“Vai ser um tiro pela culatra porque os números mostram o contrário do que eles dizem pensar: há milhares de mortes respiratórias em que as pessoas foram enterradas sem o diagnóstico de Covid-19, porque não foram feitos os exames adequados”, afirma ele.

“É bem provável que mais da metade delas tenha ocorrido por causa da doença, sem que isso fosse descoberto. São diagnósticos ocultos”, segue ele. “Uma investigação, se for séria, técnica, vai mostrar isso”, afirma o cientista.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, 9.271 pessoas morreram entre 8 de março e 16 de maio por doenças respiratórias. Destas, 2.792 tiveram diagnóstico confirmado de Covid-19. As outras 6.479 foram enterradas sem que a verificação da existência ou não da doença, por meio de exames, tivesse sido efetivada.

O que leva à certeza de que entre os mortos sem diagnóstico há vários que foram vítimas do novo coronavírus é o fato de que, só em São Paulo, o número de óbitos por doenças respiratórias nesse grupo cresceu 30% em comparação a 2019, sem outra explicação a não ser o fato de estarmos enfrentando uma epidemia.

Em Manaus, 2.519 pessoas morreram por doenças respiratórias entre março e meados de maio. Do total, apenas 920 tiveram diagnóstico de Covid-19. Outros 1.599 foram enterrados sem a confirmação da doença, o que aponta para a já conhecida subnotificação no Brasil.

Houve ainda uma explosão de número de mortes em vias públicas e em casas na capital do Amazonas. Só na 16ª semana epidemiológica, quando a cidade começou a viver o pico da doença, elas saltaram de 33, em 2019, para 268.

Orellana cruzou ainda dados de Fortaleza, no Ceará, e da cidade do Rio de Janeiro. O fenômeno se repete.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo já havia mostrado que problemas no processamento e coleta de análises podem ter tirado das estatísticas oficiais pelo menos 6.000 mortes por Covid-19 em todo o país.

O epidemiologista aponta vários problemas para a obtenção do diagnóstico de infeção pelo novo coronavírus no Brasil.

Em primeiro lugar, há o fato de o número de exames ter sido especialmente escasso, ainda mais no início da epidemia. Muitas pessoas foram enterradas sem passar por qualquer tipo de averiguação.

Além disso, afirma o cientista, não é possível sequer dizer que doentes que tiveram diagnóstico negativo para Covid-19 não estavam de fato com a doença.

“As amostras coletadas no Brasil, de secreção da garganta e do nariz, infelizmente não permitem que o teste seja tão confiável como quando o material é coletado das vias aérea inferiores, dos brônquios, diretamente dentro dos pulmões. Esse método na prática, é pouco utilizado no Brasil, especialmente em situação de crise sanitária, em que os profissionais de saúde muitas vezes não têm tempo sequer de tirar a pressão do paciente”, afirma ele.

É provável, portanto, que muitos dos que tiveram a doença descartada tenham sido vítimas dela sem que ninguém até hoje soubesse, deixando-as de fora da contabilidade oficial.

Folhapress