O governo federal excluiu do relatório anual dos direitos humanos, o Disque Direitos Humanos, os indicadores de violência policial praticada no Brasil no ano de 2019, o primeiro ano da gestão Bolsonaro. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos, responsável pela divulgação, há inconsistência nos dados coletados.
O relatório é considerado um dos principais termômetros disponíveis no país sobre a violação dos direitos humanos. Por isso, os números poderiam ajudar a entender como se comportaram as forças de segurança —em especial as polícias militares— na gestão Bolsonaro.
O relatório é produzido com base em denúncias feitas ao Disque 100, canal criado em 1997, desde 2003 sob a responsabilidade de governo federal, para atender os relatos de violação de direitos humanos no país. Ele inclui violência de qualquer ordem, como a praticada contra crianças, adolescentes e idosos —e violência policial.
“O serviço pode ser considerado como ‘pronto-socorro’ dos direitos humanos, pois atende também graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos competentes, possibilitando o flagrante”, diz nota explicativa do governo em 2018, no aniversário de 15 anos do serviço sob o guarda-chuva federal.
Para especialistas ouvidos pela Folha, essa pode ser a primeira vez que o relatório deixa de divulgar dados de violência policial.
Nos documentos mais recentes, o indicador vinha tendo aumento constante. Em 2016, as denúncias chegaram a 1.009 casos, no seguinte passou para 1.319 (alta de 30,7%), já em 2018 as queixas chegaram a 1.637—um acréscimo de 24%.
O relatório tem, por outro lado, dados de violações de direitos humanos cometidas em delegacias (administradas, por regra, por policiais civis).
Para Ariel de Castro Alves, advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais, a opção por não divulgar parece “algo sob encomenda”, voltado às bases de Bolsonaro, “onde ele tem mais tem apoio, que são as policiais estaduais”. “Principalmente os militares”, diz Alves, “que são as principais denunciadas”.
Alves qualifica o Disque Direitos Humanos como o mais importante documento sobre violação dos direitos humanos no país, principalmente na área de infância e adolescência.
“É inaceitável e inusitado não ter a violência policial no rol de violação de direitos humanos”, afirma Alves, considerando a história do indicador. “Se falar em violação de direitos humanos, a primeira coisa que lembramos é da violência policial. Isso é fazer de conta que a violência policial não existe no Brasil.”
Para o presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos da OAB, Hélio Leitão, a exclusão desses dados por parte da gestão Bolsonaro não causa nenhuma surpresa, pelo histórico de falta de transparência em outros casos. “Parece haver algo a esconder.”
“Todos os indicativos apontam para um aumento vertiginoso da violência policial e da letalidade policial. Isso no país inteiro”, continua Leitão.
“Há dados —para ficarmos apenas em um estado, onde essa questão é crônica— de que em 2019 a letalidade policial aumentou 92% no Rio de Janeiro. Nada mais, nada menos que 92%.”
O presidente da Comissão dos Direitos Humanos diz ver uma ligação direta do aumento da violência policial com os discursos dos gestores públicos, como o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC).
“Nós enxergamos uma relação direta entre as sinalizações dadas pelo gestor máximo em relação a um verdadeiro incentivo à violência e letalidade policial”, diz Leitão.
Para ele o “fenômeno também parte do Palácio do Planalto, quando nós temos aí um presidente da República que fomenta esse discurso da violência, esse discurso da eliminação do outro”. “Esse reflexo é inevitável.”
Tanto Alves quanto Leitão afirmam desconhecer outro momento em que esses dados tenham deixado de ser publicados pelo governo federal.
Para o promotor de Justiça Antonio Suxberger, membro auxiliar da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública, do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), falta no país uma base de dados sólida para acompanhamento dos casos de violência policial a fim de orientar políticas públicas.
Segundo ele, o Disque 100 é mais um canal de comunicação e tomada de providências imediatas e menos um meio para construir uma base dados.
“Nós precisamos qualificar e aprimorar as bases de dados das próprias secretarias das seguranças públicas e também do Ministério da Justiça. A chave está por ali. Efetivamente permitir que, a partir do aprimoramento desses dados, nós possamos fazer que os dados sejam cotejados. É comparação, é o eco, não é o som, aquilo que você depois comparar com outros dados vindos de ouvidorias e serviços, como é o caso do Disque 100.”
OUTRO LADO
Procurado, o Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos disse que os dados referentes a violações dos direitos humanos tendo como suspeitos os agentes de segurança não foram divulgados porque “foram identificadas inconsistências em seus registros”.
“Há registros com marcador de suspeito como agente policial, mas, na descrição, as informações são contraditórias, assim como há registros que não possuem marcador, mas as informações contêm relação com violação suspostamente praticada por agente policial”, diz nota.
Ainda segundo o governo federal, para que haja “fidedignidade dos dados apresentados”, os registros foram reservados para estudo aprofundado e “posterior divulgação, sem prejuízo aos demais dados de relevância para população”.
“Diante disso, confirmamos que os dados serão divulgados”, diz nota. O governo diz não ter previsão de quando isso irá acontecer.
O Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos que a decisão foi técnica e não foi tomada em atenção a pedidos específicos. “A opção de divulgação posterior foi técnica, para garantia da veracidade da informação, não ocorrendo qualquer pedido de não divulgação ou atraso por parte de qualquer autoridade ou entidade.”
“Lembramos que a taxonomia de violações adotada até 2019 se manteve sem alterações daquela produzida nos sistemas do Disque Direitos Humanos desde ano de 2011, vindo herdada de administrações anteriores.”
Folha de S.Paulo