Os dados divulgados pelo Monitor da Violência, parceria entre o G1, o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicam que vários estados do país parecem estar rumo à consolidação de uma tendência na redução dos crimes violentos letais intencionais. Apenas no primeiro semestre deste ano a redução foi de 22%, em muito impulsionada pela redução dos homicídios no Ceará, que chegou a 53%.
No ano de 2017, mesmo com o recorde dos homicídios, 15 estados já apresentavam redução dos crimes contra a vida. Em alguns territórios a redução vem ocorrendo há pelo menos cinco anos, tal como Paraíba, Espírito Santo, Distrito Federal e Piauí. Em São Paulo já são 19 anos consecutivos de queda. As explicações passam por melhorias da gestão pública, integração de programas de prevenção social com as políticas de segurança, melhoria da qualidade da investigação policial, maior integração entre agências, em especial as polícias Civil e Militar, e o fortalecimento de políticas de controle de armas.
Em termos regionais, no Nordeste uma iniciativa pioneira tem fortalecido a integração de esforços e o compartilhamento de informações entre agências interestaduais com o Centro Regional de Inteligência de Segurança Pública, baseado em Fortaleza, e mais recentemente com a formalização de um consórcio constitucional na região. Se o Estado tem suas fronteiras administrativas, a ação do crime tem mostrado que este é hoje um fenômeno transnacional e que demanda de governos e do sistema de Justiça uma nova gramática.
Outras iniciativas recentes podem ter contribuído para a redução da violência letal, tal como a criação do Sistema Único de Segurança Pública em 2018, a alteração na lei do fundo nacional de segurança pública garantindo recursos mais perenes para a área, e o volume significativo de recursos repassado aos estados através do Fundo Penitenciário Nacional para melhorias no sistema penitenciário – fruto do descontingenciamento do STF no julgamento da ADPF 347/DF. Mas ainda não temos evidências de seus impactos.
Outra hipótese, que não conflita com melhorias da política pública, indica que a ação de organizações criminosas, na medida em que caminham para o monopólio, tem o potencial de reduzir a violência. Quando não existem mais grupos disputando territórios e negócios ilícitos a tendência é que o nível do conflito reduza sensivelmente. Esta é uma das prováveis explicações para o que ocorre hoje no Acre, território em que o Comando Vermelho tem ganhado a guerra contra o PCC e alcançado hegemonia.
No caso de São Paulo, o fator crime organizado é ainda mais expressivo na medida em que o PCC já detém o monopólio há muitos anos. Quem assistiu à série “Sintonia”, da Netflix, produzida por KondZilla, teve a oportunidade de assistir a um “debate”, prática adotada pela facção para mediar conflitos que, anos atrás, eram provavelmente resolvidos na bala. Ao se colocar como instância reguladora de conflitos, o crime não está sendo generoso, mas visando seus interesses financeiros: além de reforçar o papel de autoridade da facção, a presença da polícia após um homicídio compromete o lucro.
Fora da estatística
Outro fator que tem sido frequentemente noticiado pela imprensa, e que não trata exatamente de uma prática nova, refere-se à desova de corpos em cemitérios clandestinos. Na semana passada o G1 noticiou a descoberta de um cemitério clandestino no bairro Alto Petrópolis, em Porto Alegre, com cerca de 100 corpos. Em São Paulo, uma rápida busca na internet revela que apenas no último ano foram encontrados dezenas de corpos em cemitérios clandestinos em Jundiaí, Caieiras, Guaianases, Embu e na capital.
Não se descarta ainda a baixa qualidade da informação do registro policial em alguns estados, como foi revelado no Atlas da Violência neste ano. A comparação entre os dados da saúde, que têm como fonte o atestado de óbito, e os dados da segurança, que derivam dos boletins de ocorrência, é utilizado por pesquisadores e gestores como um mecanismo de controle da qualidade dos registros. Se os dados não vão coincidir, pois mensuram fenômenos distintos com diferentes propósitos, devem caminhar em um mesmo sentido. Quanto mais próximos, melhor a informação.
As bases de dados com registros policiais avançaram substancialmente na última década, tanto que entre 2014 e 2016 a diferença entre os números da violência letal de ambos os sistemas não ultrapassava 1,4%. Em 2017, no entanto, essa diferença atingiu a marca de 2,7%, impulsionada pela distorção dos dados no Amazonas e na Bahia, sensivelmente menores nos registros policiais.
Por fim, é de se ressaltar que os dados divulgados na análise semestral do Monitor da Violência não incorporam os registros de mortes decorrentes de intervenção policial, fenômeno que ainda não fomos capazes de monitorar mensalmente, dada a dificuldade dos estados de enviarem a informação. Isso torna a análise da mortalidade violenta parcial, ainda mais em um contexto em que a letalidade da polícia é cada vez mais significativa no cômputo geral, tal como no Rio de Janeiro e no Pará.
Em meio a tantas variáveis e dimensões, o Brasil vai deixando passar uma oportunidade para documentar e reforçar o que deu certo e evitar erros. Segurança deixou de ser prioridade em nome de uma narrativa até aqui bem-sucedida em termos de opinião pública, conforme pesquisa CNI/Ibope divulgada na última segunda (26), mas desprovida de alicerces e consequências práticas. O maior risco é vermos, em breve, uma retomada dos índices criminais na medida em que não soubemos fazer as reformas efetivamente necessárias na área.
Fonte: G1