Primeiro evento do Instituto de Equideocultura (IBEqui) discutiu ações do Mapa, subjetividade de exames, isolamento da bactéria BM e quarentenário
Um tema controverso. Essa foi a tônica levantada pelos participantes do primeiro workshop organizado pelo recém-criado Instituto Brasileiro de Equideocultura (IBEqui), realizado na tarde de terça-feira (15/9), com a participação de representantes do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e veterinários de equídeos. Com o tema “A visão técnica sobre o Mormo no Brasil”, o evento foi acompanhado, virtualmente, por um público de aproximadamente 180 pessoas e se estendeu por três horas. Entre palestras e debates, o encontro serviu para a apresentação dos estudos e trabalhos desenvolvidos pelo Mapa e trouxe à tona algumas antigas polêmicas, como a subjetividade dos exames de diagnósticos, isolamento da bactéria Burkholderia Mallei e o sacrifício de animais assintomáticos, entre outros. A boa notícia da tarde foi a confirmação do Mapa sobre os avanços do projeto de implantação de um Quarentenário para exportação de animais para os continentes europeu e asiático.
Logo na abertura, o presidente da Junta Administrativa do IBEqui, Manuel Carlos de Lima Rossitto, falou sobre os objetivos do novo Instituto em reunir toda a comunidade equestre nas discussões sobre os gargalos do Mormo no Brasil, um tema que há anos vem gerando polêmicas e prejuízo ao setor. Agradeceu a presença de todos, em especial aos palestrantes e representantes do Mapa, e destacou a contribuição da Revista Horse, por meio do editor responsável Marcelo Mastrobuono, que impulsionou a criação do Instituto na série de debates que reuniu, de forma inédita, dirigentes das principais raças de criadores do País.
Na palestra inicial, uma das mais aguardadas, a chefe da Divisão de Sanidade de Equídeos do Mapa, Eliana Lara Costa, apresentou, de forma detalhada, um panorama sobre a situação de combate ao Mormo no Brasil, destacando algumas ações que estão em andamento desde que assumiu o cargo, no início do ano passado. Entre elas, destaque para os estudos de impacto econômico e epidemiológico, que estão sendo desenvolvidos pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), por meio de uma licitação viabilizada por meio de verbas do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA)
Com a apresentação de slides, Eliana citou alguns especialistas envolvidos nos estudos sobre a doença, como Alessandra Nassar, do Instituto Biológico de São Paulo, Fernando Leandro, doutor em Ciência Animal pela Universidade Federal de Minas Gerais, Maristela Pituco, doutora pela Escola de Medicina Veterinária de Hannover da Alemanha, Rinaldo Mota, doutor em Ciência Veterinária pela Universidade do Rio de Janeiro, o primeiro a apresentar trabalhos sobre o isolamento da Burkholderia Mallei no Brasil.
A coordenadora do Mapa também explicou por que houve mudanças nos protocolos de exames sorológicos para o diagnóstico do Mormo, com a substituição do Fixação de Complemento (FC) pelo Elisa como diagnóstico de triagem, e o Western Blotting (WB), como contraprova comprovatória. Segundo ela, depois de muitos estudos, chegou-se à conclusão de que, no Brasil, o Elisa seria mais preciso e ágil para a detecção da doença, mantendo-se o WB como exame confirmatório, a exemplo do que recomenda a homologação da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE).
A chefe da Divisão de Sanidade de Equídeos do Mapa revelou ainda que no Brasil 8.800 profissionais dão suporte ao Programa Nacional de Sanidade de Equídeos (PNSE), na colheita de amostras sorológicas que são submetidas ao teste de triagem. “O número de exames que são realizados no país para efeitos de movimentação de animais em 2019 foram 563.624 exames. Nos primeiros seis meses deste ano foram 226.417 exames”, disse, destacando que o número de casos confirmados de Mormo saltou de 74, registrados em 2019, para 84, apenas no primeiro semestre de 2020.
Quarentenário
Entre os avanços que vem sendo conquistados, a coordenadora da Sanidade Animal do Mapa citou como exemplo a questão da criação de um Quarentenário, que possibilitará a exportação de animais do Brasil para os continentes europeu e asiático. Segundo ela, o projeto está em fase de conclusão e deve ser publicado em breve pelo Mapa um protocolo com os requisitos sanitários mínimos necessários como base em uma certificação oficial brasileira de compartimento livre de Mormo. “Esse trabalho foi solicitado e realizado de forma conjunta com a Câmara setorial de Equideocultura, por meio do seu presidente José Carlos Fragoso Pires”, explicou ela.
O Quarentenário é uma antiga reivindicação dos criadores de cavalos de várias raças, que atualmente estão impedidos de exportar animais diretamente à Europa e Ásia. Segundo apurou a reportagem da Horse, o espaço para a quarentena seria montado dentro do Jockey Club São Paulo, em Cidade Jardim, que conta com uma ampla área e já dispõe de estrutura para entrada e saída de animais.
Debates
Após a apresentação de Eliana Costa, foi aberto o espaço para comentários de veterinários convidados, mediado pelo presidente da Câmara de Equideocultura, José Carlos Fragoso Pires. Na sua apresentação, Pires destacou a importância da mudança no comando do Mapa para buscar medidas mais objetivas. “A mudança de equipe no Ministério fez com que a proposta passasse de administração do problema à solução do problema”, disse, destacando como um dos grandes avanços o trabalho feito em conjunto com o Mapa para a implantação do Quarentenário sanitário. “É uma antiga demanda do setor, que busca uma solução a curto prazo para destravar as exportações”, justificou.
Segundo o presidente da Câmara de Equideocultura, o projeto foi elaborado a “quatro mãos” com o Mapa”, depois de uma consulta à Federação Equestre Internacional (FEI), que definiu como prioridade a abordagem de três pontos principais: a identificação, rastreabilidade e quarentena dos animais. “São esses três pontos que estão sendo colocados na proposta, que busca a obrigatoriedade de chip, passaporte e quarentenário oficial para os cavalos”, revelou.
Após a apresentação, Pires abriu o espaço para a manifestação de veterinários convidados a relatar casos no enfrentamento da doença. A primeira a falar foi a veterinária Patrícia Brossi, que afirmou ter vários animais de cliente sacrificados, mesmo assintomáticos, e criticou a imprecisão e disparidades de resultados dos exames sorológicos de diagnóstico. “Quando a gente resolveu analisar a planilha de dados desses animais, vimos que a alternância de resultados positivos e negativos era inexplicável e incompreensível, até que tivemos a oportunidade de realizar um teste na Alemanha, que veio com um resultado negativo”, relatou. Segundo ela, depois disso, outros exames foram realizados no Brasil, apresentando novamente resultados diferentes. “Tivemos três resultados diferentes: positivo, negativo e inconclusivo”, disse.
Patrícia afirmou que, depois disso, procurou se aprofundar nos “caminhos da construção” do diagnóstico, pesquisando outros criatórios que passaram pelo mesmo problema. “A gente percebeu que não havia um embasamento para a construção dessa política sanitária como é preconizado pelas autoridades epidemiológicas”, argumentou, destacando que, entre os problemas encontrados, constatou-se a falta de um “Cadastro Nacional” e a falta de conhecimento de quem são os animais que compõem essa população de equídeos. “A partir daí, a gente percebeu que tinha uma dificuldade para entender qual a prevalência do Mormo no Brasil”, explicou.
Para Patrícia, essa é uma questão fundamental para entender a complexidade do problema do Mormo no Brasil. “Sem o conhecimento da prevalência, a gente não vai conseguir interpretar os testes sorológicos”, disse, destacando que ainda se sente “no escuro em relação ao diagnóstico sorológico”, cravou.
Outra doença?
Outra explanação muito esperada foi do veterinário Walnei Miguel Paccola, cirurgião e proprietário do Hospital Equicenter, que chegou a ser interditado no ano passado em razão de casos de Mormo. Depois de um apanhado geral sobre algumas questões que envolvem a equideocultura nacional, Paccola suscitando a tese que abordou na entrevista concedida à Horse no ano passado (Veja entrevista concedida à Horse AQUI), na qual defende a tese de que, possivelmente, pode-se tratar de uma outra doença, e não especificamente do Mormo. “Quem já viu a doença Mormo, ao vivo e em cores, pessoalmente?”, questionou.
O veterinário afirmou que vem estudando a fundo os casos e que dispõe de um estudo com mais de 20 páginas, que gostaria de apresentar à chefe do departamento de Sanidade Animal do Mapa, Eliana Lara. “Peço de antemão desculpas e espero que me entendam, mas a hora que se sentirem preparados, nós vamos travar um embate e, de minha parte, vai ser algo meio caloroso”, previu.
Paccola questionou a base dos materiais (cepas) que foram utilizadas para o isolamento da bactéria Burkholderia Mallei (BM), sugerindo, inclusive, uma “acareação”. “Tenho muito respeito por todos vocês, sei que ninguém está brincando, mas eu queria entender um monte de coisas. Quantas cepas nós temos hoje no País e por que elas não são mostradas e passadas por uma acareação?”, desafiou.
O veterinário afirmou ainda que, se seguir a forma que está sendo conduzido o problema do Mormo, o Brasil, que tem um plantel estimado em 5 milhões de cavalos, teria de sacrificar 40 mil animais. “É a proposta do Mapa abater 40 mil cavalos? É óbvio que algo está errado”, afirmou, destacando que muito do que se fala do Mormo na teoria, na prática não se confirma. “Nós não estamos fazendo um programa de erradicação correto contra a Burkholdelia Mallei, contra esse Mormo que nós temos, que digo que é o nosso Mormo Brasileiro”, disse. “Vejo que nós estamos abatendo cavalos, mas sem respostas efetivamente concretas e isso não vai parar, doutora. Daqui a três anos vamos estar abatendo cavalos, daqui a oito anos vamos estar abatendo cavalos e alguém vai descobrir o que eu tanto falo”, afirmou.
O veterinário insistiu que gostaria de uma reunião com os pesquisadores, mesmo que a portas fechadas. “Hoje, as pessoas que têm cavalos doentes estão com medo, porque o sistema se tornou tão cruel, punitivo e as pessoas têm medo. A doença existe, é uma zoonose. Estou aqui dizendo que estamos à disposição para discutir”, afirmou o cirurgião.
Réplica
A fala do veterinário Walnei Paccola foi sucedida pelo microbiologista Rinaldo Mota, que estava acompanhando o workshop como ouvinte e pediu para se manifestar. Mota se apresentou lembrando que foi o responsável pelo primeiro diagnóstico da reemergência do Mormo no Brasil, em 2000, juntamente com o professor Fernando Leandro, do departamento de medicina veterinária da Universidade Rural de Pernambuco. “Depois de muitas análises, tanto patológica quanto microbiológicas, a gente isolou então essa bactéria”, afirmou, destacando que o primeiro isolamento foi bastante difícil, porque não se conhecia essa bactéria, mas foi validado por laboratórios internacionais.
Segundo o especialista, a partir do primeiro isolamento, foram realizados sucessivos isolamentos. “Com todo respeito que tenho pelo seu trabalho (referindo a Paccola), estamos falando aqui de 20 anos de experiência com Mormo no Brasil. Ou mais de 20 anos trabalhando orientando muitas teses de mestrado e doutorado”, afirmou.
O microbiologista reforçou que não existe nenhuma dúvida sobre a existência do Mormo no Brasil. “Acompanhei mais de 100 casos da doença, inclusive, fizemos a divulgação em um artigo científico dos indicadores clínicos do Mormo com mais de 100 equinos diagnosticados por meio de isolamento bacteriano e por meio de testes sorológicos. Então, isso não se contesta. Não cabe neste momento fazer esta contestação”, contrapôs.
Brito, entretanto, disse que está aberto para discutir as teses apresentadas por Paccola. “Se existe outra doença, que o senhor está estudando aí em São Paulo, a gente pode conversar. Quem sabe uma parceria de pesquisa e auxiliar inclusive nas suas pesquisas. Acho que o papel do pesquisador é de dar auxílio para os órgãos de fiscalização, inclusive estamos colocando os programas de pós graduação na área de veterinária do Brasil em contato direto com o Mapa para que a gente possa tentar resolver esses problemas”, sugeriu.
Fonte:Revista Horse / Fotos:Divulgação