Se Ramírez for culpado, mancha história do Bahia, diz presidente sobre caso Gerson

Após assistir, com áudio, mais de uma hora de lances do jogo entre Flamengo e Bahia no último domingo (20), pelo Campeonato Brasileiro, o presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, afirma estar assustado com o nível de ofensas e desrespeito mútuo que há dentro de um campo de futebol.

O jogo, que poderia ter ficado marcado pela virada do time carioca, ganhou holofotes após a denúncia de racismo do meia flamenguista Gerson, que acusa o adversário Juan Ramírez de lhe dizer “cala a boca, negro”.

“Não tenho dúvida de que a afirmação de Gerson é verdadeira, ele de fato ouviu aquilo. A dúvida é se Ramírez falou”, responde Bellintani ao jornal Folha de S.Paulo.

O atleta do time carioca entrou na Justiça Desportiva e na criminal contra o colombiano por injúria racial. Ramírez, por sua vez, nega o ocorrido, diz que falou para os adversários “joguem sério” e que também foi chamado de “gringo de merda” pelo atacante Bruno Henrique.

Além dos dois jogadores, o treinador Mano Menezes -flagrado pelas câmeras chamando a acusação de Gerson de “malandragem”-, assim como o árbitro da partida -que na súmula relatou a denúncia, mas não a testemunhou-, serão ouvidos no inquérito que corre na Delegacia de Crimes Raciais.

Bellintani atendeu à reportagem por telefone, pouco depois de terminar a análise dos vídeos. Criador do Núcleo de Ações Afirmativas do Bahia, diz que o caso, se comprovado, mancha a história do clube, que mesmo protagonizando campanhas antirracistas, é responsável pelo episódio.

À luz de uma acusação de racismo e um possível episódio de xenofobia, ele vê isso como resultado de anos de tolerância do futebol com esse tipo de agressividade verbal. “Dentro das quatro linhas é corriqueiro e fora todo mundo finge que não vê.”

PERGUNTA – Após esse episódio, é hora do Bahia pensar em um projeto que vá além das iniciativas institucionais e extracampo, mas voltado à formação dos atletas?

GUILHERME BELLINTANI – O Bahia é precursor da luta antirracista no Brasil como clube, foi pioneiro, um dos mais destacados, se não o mais, e o destino colocou um desafio deste tamanho na nossa frente. Não queria passar por isso, está sendo o momento mais difícil da minha gestão, mas acredito que isso tomou destaque no Bahia não por acaso, mas porque estamos preparados para enfrentar. A gente está construindo um projeto a partir disso, dentro do Núcleo de Ações Afirmativas. Propor mudanças de regras que sejam fortes no combate ao racismo dentro do campo, mas também um trabalho formativo dos atletas, funcionários e diretores dos clubes. São dois saltos muito importantes.

Você afirmou que “quis o destino” que a acusação fosse contra um jogador do Bahia. O que isso diz sobre o futebol brasileiro, o racismo e a responsabilidade do Bahia neste caso?

GB – É importante pensar o que ele mostra e não mostra. O que não é mostrado ainda é muitíssimo maior do que o que é. Vemos cada vez mais casos de racismo serem destacados na sociedade, inclusive no futebol, mas isso ainda é uma gota no oceano racista da sociedade brasileira. O que está sendo mostrado hoje ainda é a ponta de um iceberg imenso.

Se o Ramírez for considerado culpado, isso mancha a história do Bahia?

GB – Mancha, sempre, se ele for culpado. Mancha o Bahia, o futebol brasileiro. Mas eu procuro olhar, apesar de ser uma situação tão grave, o copo meio cheio. Porque se a gente for analisar, não se trata de um fato, se confirmado, novo, mas um fato antigo que agora está sendo mostrado. A mancha do racismo no futebol brasileiro já existe. Se confirmado, apenas está mais aparente.

O que o Ramírez te disse?

GB – Ele está muito abalado, demorou para compreender a circunstância. Em todas as conversas, que juntas dão cerca de duas horas, ele afirma que não disse a expressão “cala a boca, negro”. Ele é muito veemente na afirmação que não falou isso e que não é uma expressão comum dele o próprio “cala a boca”. Ele não fala português, está há 40 dias no Brasil. Ele explica que o jogo estava tenso, com xingamentos e agressões de ambas as partes, diz que foi chamado de “gringo de merda”, mas que não falou “cala boca, negro”. É a versão dele.

Se ele diz que foi chamado de “gringo de merda”, também não é um caso de Justiça?

GB – É uma xenofobia muito clara. Então, sim, mas com cuidado para primeiro não parecer que uma denúncia seja uma resposta à outra. Coisas tão graves como xenofobia e racismo, uma não neutraliza a outra, no final o jogo não dá 0 a 0, os dois perdem de goleada. Não há uma anulação de uma agressividade por outra. Assim como digo que é direito do Gerson levar o caso às circunstâncias que ele queira levar, é um direito dele [Ramírez] também levar esse tema às consequências, um direito pessoal e individual. Se ele decidir, o clube vai apoiar, sem deixar de puni-lo caso fique comprovado o ato racista.

O que você entende que seria a melhor postura para um treinador neste caso?

GB – Eu não sou um cara de experiência de beira de campo. Confesso que acabei de ver mais de uma hora de gravação, análise de vídeos de partes quentes do jogo. Me assombrou demais, mas demais mesmo, causou perplexidade a forma como as pessoas se desrespeitam dentro do campo, como o futebol se permite e tolera as agressividades verbais. Não tem desculpa que jogo de futebol é assim, isso é uma visão absolutamente restrita e limitada. Não defendo que todos sejam mudos, mas o que houve naquele jogo mostra que o futebol brasileiro tolera palavras, formas, jeitos e gestos e talvez muitos nem se surpreendam. Não quero falar exclusivamente do treinador, porque vi uma grande salada de agressividades. Ninguém dá o direito ao outro de falar “cala boca, negro”. É crime. Nem “gringo de merda”. Me parece que isso tem sido, durante anos, escondido do futebol brasileiro. Dentro das quatro linhas é corriqueiro e fora todo mundo finge que não vê.

Você afirmou que a demissão do técnico Mano Menezes aconteceu antes de você saber da denúncia de racismo e que os fatos não estão relacionados. Mas, no Bahia, conivência com o racismo é motivo para o desligamento de um profissional, qualquer que seja ele?

GB – A gente está numa discussão grande sobre isso e há visões muito diferentes. Acho, primeiro, que essa decisão não precisa ser tomada exclusivamente por alguém branco como eu. A gente tem debatido bastante com pessoas do Núcleo, com pessoas do movimento negro de Salvador. Algumas entendem que o desligamento dessas pessoas do clube é o caminho correto. Outras que, a depender das circunstâncias, do que foi dito, da cultura dessa pessoa, da história de vida, que estar no Bahia pode ser importante para o fortalecimento da causa antirracista; que jogar essa pessoa em outra realidade instrucional pode fazer dela mais racista ou no mínimo fora da luta, e que ela estando num ambiente que se propõe à luta, pode ser um caminho mais efetivo.

E se for o caso de uma ofensa racista?

GB – A mesma coisa. Tanto a conivência quanto a ação racista são um fato social que existe em todas as instituições, absolutamente todas. O que diferencia é o quanto isso se torna visível e como cada instituição reage.

O Bahia vai defender o seu jogador no tribunal?

GB – Primeiro, vamos concluir nosso processo interno. Temos uma acusação grave, uma voz da vítima que é muito relevante, mas longe de mim entender que a voz da vitima é a única coisa a ser analisada. Tenho que dar ao meu atleta o direito à ampla defesa e ao contraditório. Não posso fazer um tribunal de inquisição, um linchamento público. Após a consolidação desse processo, inclusive com eventuais punições e políticas implementadas a partir disso, a gente vai estabelecer o comportamento do clube nos tribunais externos. Não existe algo definido.

Sendo o Ramírez um jogador do Bahia e sendo o Bahia um clube que se declara antirracista, como garantir que haverá isenção na posição do clube com relação ao atleta?

GB – Este talvez seja o grande desafio como presidente: conseguir um equilíbrio na decisão, que qualquer que ela seja não vai agradar a todos, mas que seja uma decisão que ao mesmo tempo dê uma resposta à sociedade, firme e dura, se for confirmado o caso da injúria racial. Mas se a gente não conseguir comprovar ou ter segurança plena de que aconteceu, a gente também tem que permitir a hipótese do contraditório, e a partir daí construir uma solução.

Se for concluído que o Gerson ouviu errado, o clube estuda fazer algo?

GB – Não é o caso, as dores já são muito fortes para a gente aprofundá-las. Não tenho dúvida de que a afirmação de Gerson é verdadeira, ele de fato ouviu aquilo. A dúvida é se Ramírez falou. Gerson merece o respeito e toda a crença de que de fato ele ouviu, a única dúvida é se Ramírez falou, porque pode ser que ele ouviu algo que Ramírez não falou.

Nas imagens, não é possível tirar essa dúvida?

GB – As imagens que já vimos não mostram que ele falou. Nenhuma imagem é capaz de dizer o que ele falou, que horas ele falou, mas também não mostra que ele não falou. Não há imagem conclusiva nem para o falou [algo] nem para o não falou. O que temos, e que é muitíssimo relevante, é o depoimento da vítima.

À luz desse episódio, qual a responsabilidade do Bahia?

GB – Tudo está acontecendo por responsabilidade também do Bahia, na omissão, considerando que o fato esteja confirmado. Que apesar de fazermos muito mais do que outros fazem, mostrou-se que é pouco. E também uma responsabilidade ativa. O Bahia é um dos clubes que tornou o ambiente do futebol mais propício a denúncias desse tipo, presumindo que aconteceu, mesmo que ainda não esteja confirmado. Não que a gente errou no que fizemos, mas que o que fizemos não foi suficiente para evitar uma circunstância desse tipo, se ela de fato aconteceu. O Bahia está no caminho certo, mas um fato como este mostra que ainda é pouco.

Fonte:Galáticos / Foto: Vagner Souza / BNews