A compra de máscaras impróprias a profissionais de saúde ocorreu por valor acima do praticado no mercado, segundo um documento interno do Ministério da Saúde que balizou a aquisição pela pasta.
O documento foi enviado à CPI da Covid no Senado, que passou a investigar a compra e a distribuição de máscaras pelo ministério. O caso foi revelado pela Folha em 17 de março.
O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem. A empresa responsável diz que os preços cobrados estiveram dentro do praticado no mercado.
Ao todo, a pasta adquiriu 40 milhões de máscaras chinesas KN95, cujo uso por profissionais de saúde foi posteriormente desaconselhado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Na embalagem do produto, consta a inscrição “non-medical”. Foram gastos cerca de R$ 350 milhões com os 40 milhões de máscaras.
Os produtos foram comprados na gestão de Luiz Henrique Mandetta. A gestão do general da ativa Eduardo Pazuello distribuiu o material e não agiu para recolhê-lo e para buscar uma solução diante dos alertas da Anvisa.
O documento interno do ministério detalha o que embasou a aquisição das máscaras. Ele foi enviado à CPI dentro de um inquérito civil do MPF (Ministério Público Federal) que investiga a compra.
O parecer é da Colmer (Coordenação de Licitações e Análise de Mercado de Insumos Estratégicos para Saúde). A proposta da empresa escolhida, sem licitação, tinha um preço superior à média de preços cobrados por empresas contratadas anteriormente, conforme o documento.
Todas as aquisições analisadas se basearam em preços inferiores ao cobrado pela empresa responsável pela máscara KN95. A média do valor pago foi de R$ 2,53, segundo os documentos entregues à CPI.
Cada KN95 custou US$ 1,65, ou R$ 8,65, pela cotação do dólar no momento da compra.
Segundo o documento interno do Ministério da Saúde, a pesquisa feita levou em conta contratos anteriores a janeiro de 2020. Antes, portanto, da pandemia do novo coronavírus.
“Os preços localizados foram muito inferiores muito provavelmente porque, à época, estes insumos não eram tão demandados, tendo seu consumo elevado radicalmente somente a partir de fevereiro de 2020”, cita o documento.
Por isso, a coordenação decidiu fazer pesquisas aleatórias em sites abertos que ofereciam máscaras do tipo N95 ou PFF2 —equivalentes à KN95, como se acreditava naquele momento.
As pesquisas foram feitas para compras unitárias, como consta dos documentos entregues à CPI. E encontraram, mais uma vez, preços inferiores ao pago pelas máscaras KN95.
Pelo menos três resultados apontaram preços menores: R$ 3,33, R$ 5,69 e R$ 7. Os demais oscilavam entre R$ 16,41 e R$ 30. A média era superior ao preço cobrado pela empresa contratada.
Para justificar a compra das máscaras, a coordenação do Ministério da Saúde evocou trecho de MP (medida provisória) vigente que permitia contratações por valores superiores “decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos”.
“A compra emergencial, por si só, tende a não favorecer a obtenção da proposta mais vantajosa para a administração, devido ao curto prazo para sua efetivação e o enxuto prazo para entrega”, afirma o documento.
E prossegue: “Partindo desse cenário de urgência, entende-se que a aquisição com um preço levemente superior ao que o mercado paga (em condições normais) se encontra condizente com a situação vivenciada”.
A Colmer não tem expertise para análise sanitária dos produtos, cita o parecer, de 2 de abril de 2020. O contrato foi assinado no dia 8 do mesmo mês.
Assim que chegaram aos estados, as máscaras acabaram estocadas, sem possibilidade de envio aos hospitais, diante da inscrição “non-medical” nas embalagens. Depois da posição da Anvisa, contrária ao uso por profissionais de saúde, os produtos passaram a ser distribuídos para uso diverso do hospitalar.
As máscaras foram vendidas por uma empresa de Hong Kong, a Global Base Development HK Limited, representada no Brasil pela 356 Distribuidora, Importadora e Exportadora, cujo dono, Freddy Rabbat, atua no mercado de relógios de luxo suíços —é ele quem assina o contrato com o governo federal.
Em nota assinada pelos advogados Eduardo Diamantino e Fabio Tofic, a distribuidora afirmou que o preço praticado foi compatível com os valores de mercado.
“Havia uma escassez de máscaras no mercado mundial. No auge da corrida global, países como EUA e França encomendaram bilhões de máscaras, além de seus agentes estarem comprando máscaras em dinheiro nas pistas de decolagem dos aeroportos chineses, o que causou disparada de preços em todo o mundo”, cita.
A empresa apresentou menor preço e maior disponibilidade entre os concorrentes, conforme os advogados.
“Os cinco fabricantes chineses do produto atestaram a segurança do uso em ambiente hospitalar não cirúrgico. Não foram reportadas à empresa quaisquer reclamações, jamais tendo sido proibidos por qualquer ato normativo. Todas as máscaras dispõe de certificação aceita internacionalmente, e obtiveram resultados conclusivos de eficácia na retenção de 95% de partículas”, diz a nota.
Além de inquéritos no MPF e da CPI da Covid, o TCU (Tribunal de Contas da União) também passou a investigar a compra das máscaras após a publicação da reportagem pela Folha.
Auditores do TCU identificaram um relatório parcial de fiscalização interna que registrou “divergências em parte das cargas de máscaras recebidas”. Segundo o Ministério da Saúde, o desfalque foi de apenas 6,3 mil itens, repostos em dezembro.
A CGU (Controladoria-Geral da União), por sua vez, informou ao MPF em setembro que o contrato estava sob análise. A reportagem questionou o órgão sobre os resultados dessa análise, oito meses depois. Não houve resposta.
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