As suspeitas envolvendo a compra da vacina indiana Covaxin atingiram o Palácio do Planalto, com o relato de que o próprio presidente Jair Bolsonaro foi alertado há mais de três meses dos indícios de irregularidades.
O surgimento dos novos fatos resultou em uma nova linha de investigação da CPI da Covid, que se tornou central e deve nortear as atividades da comissão pelas próximas semanas. O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que talvez seja a denúncia mais grave já recebida pelo colegiado.
O Planalto, por sua vez, reagiu no fim da tarde desta quarta-feira (23) escalando um dos investigados pela CPI para explicar o caso Covaxin —Elcio Franco, assessor especial da Casa Civil e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde—, mas sem conseguir rebater o eixo das suspeita.
O presidente Bolsonaro ainda pediu para que a Polícia Federal investigue o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda e o irmão dele, o deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), autores das acusações que o envolvem.
Miranda disse que acionar a PF é uma tentativa desesperada de calar testemunhas sobre a compra da vacina indiana e mostra que Bolsonaro “não fez nada” após ser alertado sobre as possíveis irregularidades.
O caso em torno das suspeitas da compra da Covaxin pelo governo Bolsonaro foi revelado pela Folha na sexta-feira passada (18), com a divulgação do depoimento de Luís Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação da pasta.
Ele disse ao Ministério Público Federal que recebeu uma “pressão atípica” para agilizar a liberação da Covaxin, desenvolvida pelo laboratório Bharat Biotech.
O contrato de R$ 1,6 bilhão entrou na mira da CPI, que suspeita de favorecimento para a vacina indiana e, em particular, para a empresa brasileira Precisa Medicamentos, que atuou como intermediária no negócio.
A Covaxin é a vacina mais cara negociada pelo governo federal, com valor de R$ 80 a dose. Além disso, as negociações foram concluídas em tempo recorde, quando comparada com os processos com a Pfizer e o Instituto Butantan.
Em entrevista à Folha nesta quarta-feira, o deputado federal Luís Miranda afirmou que alertou pessoalmente o presidente Jair Bolsonaro sobre os indícios de irregularidades na negociação e a pressão para a sua rápida liberação.
“No dia 20 de março, fui pessoalmente, com o servidor da Saúde, que é meu irmão, e levamos toda a documentação para ele”, disse o parlamentar.
O presidente, segundo o deputado, teria naquele encontro prometido acionar a Polícia Federal para investigar o caso. “Para poder agir imediatamente, porque ele compreendeu que era grave, gravíssimo”, disse.
O parlamentar disse que não recebeu retorno do presidente ou da PF sobre a abertura de um inquérito.
O deputado compartilhou com a Folha imagens que mostram conversas dele com um auxiliar de Bolsonaro, no dia 20 de março deste ano, pelo celular. Miranda pede que o presidente seja avisado sobre “um esquema de corrupção pesada na aquisição das vacinas”.
Ele disse ao auxiliar presidencial ter provas e testemunhas. “Depois não quero ninguém dizendo que eu implodi a república. Já tem PF e o caralho no caso. Ele precisa saber pra se antecipar”, disse Miranda ao auxiliar de Bolsonaro.
Naquela mesma tarde, o deputado e o presidente se reuniram no Palácio da Alvorada.
A cúpula da CPI da Covid decidiu não fazer julgamentos antecipados, argumentando que isso poderia dar brecha para acusações de imparcialidade da comissão. No entanto, defendem que as novas revelações são graves e serão aprofundadas.
Aziz disse ter ouvido uma “versão” do tema por via do deputado Luís Miranda e que a comissão agora vai aos fatos. No entanto, disse que a situação representa talvez a informação mais impactante que a comissão já teve contato desde o início das atividades.
“Temos que ter muito cuidado porque talvez tenha sido a denúncia mais grave que a CPI recebeu. Por isso que eu preciso ter muita cautela, muita paciência e não passar a carroça na frente dos bois”, afirmou.
O presidente da CPI também afirmou que a comissão pretende apurar a fala do deputado Luís Miranda segundo a qual pode ter havido pagamentos de propina nas negociações do contrato para a compra da Covaxin, negociado pelo ministério com a Precisa Medicamentos.
A comissão já investiga um possível favorecimento à empresa. “Se tudo aquilo que ele [deputado Luis Miranda] disse for verdade ou parte for verdade, são gravíssimas as acusações, inclusive sobre a questão do pixuleco. O Pazuello, no dia que estava saindo, ele fala por que foi demitido. Ele disse que ele foi demitido, que o Pazuello foi demitido porque não aceitava corrupção”, disse o senador.
Aziz também disse que solicitou ao delegado da PF cedido para a comissão que peça aos diretores da corporação informações sobre eventual abertura de inquérito para apurar as denúncias que teriam sido levadas ao presidente.
“Eu pedi uma informação do diretor-geral da Polícia Federal se houve o pedido para investigar a compra da Covaxin. Se o presidente ligou para o diretor-geral da Polícia Federal e disse: ‘Ó, tem uma denúncia aqui feita pelo deputado Luís Miranda e pelo irmão dele e a gente quer saber se realmente tocaram essa investigação’”, afirmou.
“É uma coisa natural. O presidente, se foi comunicado e tomou providência, ótimo. Se não tomou providências, é preocupante”, completou o presidente da CPI do Senado.
Também nesta quarta-feira, os senadores da comissão aprovaram requerimentos que apontam justamente para o aprofundamento desse flanco das investigações.
Um do requerimentos aprovados é o convite para que o servidor Luís Ricardo Miranda preste depoimento à comissão para explicar a pressão que diz ter sofrido para liberar a importação da vacina Covaxin.
O depoimento do servidor será nesta sexta-feira (25). Ele será ouvido junto com seu irmão, o deputado federal Luís Miranda, que solicitou à comissão para estar presente.
Os senadores também aprovaram requerimento de convocação (modelo no qual a presença é obrigatória) do tenente-coronel Alex Lial Marinho.
Lial Marinho era coordenador-geral de logística de insumos estratégicos de saúde da pasta e homem de confiança do ex-ministro Eduardo Pazuello. Luís Ricardo Miranda disse em depoimento ao MPF que o militar era um dos autores da pressão em favor da Covaxin.
Também foi aprovada pela CPI a quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático de Lial Marinho.
Os senadores também aprovaram a solicitação de documentos para o Ministério da Saúde referentes à compra da Covaxin. Foram solicitados o processo de licitação e o contrato.
A comissão aprovou ainda a convocação da servidora da Secretaria de Governo Thais Amaral Moura. Ela ganhou notoriedade recentemente, pois foi apontado que seria a autora de requerimentos apresentados à CPI por senadores governistas.
Havia também requerimento para a sua quebra de sigilo, mas que foi retirado da pauta a pedido do senador governista Ciro Nogueira (PP-PI).
O requerimento para a quebra de sigilo, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), aponta que Thais Amaral Moura seria um “possível elo entre o governo Bolsonaro e a empresa Precisa Medicamentos”.
O requerimento aponta que ela é namorada de Fred Wassef, advogado da família Bolsonaro.
Pressionado, o governo Bolsonaro reagiu no fim da tarde sem comentar as denúncias especificamente, mas anunciando a entrada da PF no caso para investigar os denunciantes.
O pedido de investigação foi anunciado pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzony.
“O presidente determinou que a Polícia Federal abra uma investigação sobre as declarações do deputado Luis Miranda, sobre as atividades do seu irmão, servidor público do Ministério da Saúde, e sobre todas essas circustâncias expostas no dia de hoje”, disse Lorenzoni.
O ministro não citou pedido de apuração sobre as possíveis irregularidades na compra apontadas por Miranda e seu irmão.
Onyx disse que pedirá investigações sobre documento apresentado pelo deputado para apontar supostas irregularidades, que seria diferente do papel enviado pela empresa ao ministério. “A má-fé é clara. A suspeita da falsificação é forte”, disse.
O papel apontava tentativa de antecipar pagamento de US$ 45 milhões para a importação de um lote da vacina. Segundo Luis Miranda, o documento foi entregue a Bolsonaro.
“Ele ameaçou testemunhas de forma desesperada, sem antes ver o que temos para apresentar à CPI”, disse Miranda. “A fala do Onyx dá a entender que o presidente não fez nada [após o alerta]. Nem avisou a Polícia Federal”, declarou o deputado.
Relator da CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) também reagiu às falas do ministro da Secretaria-geral da Presidência, afirmando que se trata de uma “declaração criminosa”. Renan anunciou que vai convocar Onyx para prestar depoimento na comissão e ameaçou pedir a sua prisão.
“Se ele continuar a coagir as testemunhas, nós vamos requisitar a prisão dele, para que essa gente entenda que é preciso respeitar a instituição da Comissão Parlamentar de Inquérito”, afirmou, em entrevista à Globonews.
Cronologia
1ª reunião (20.11)
É feita a primeira reunião técnica no Ministério da Saúde sobre a aquisição da vacina indiana Covaxin, produzida pela Bharat Biotech.
Comitiva (06.01)
Embaixador brasileiro em Nova Déli, na Índia, recebe uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas. Um dos representantes é Francisco Maximiano, presidente da Precisa Medicamentos. A missão visita a Bharat Biotech.
Carta ao 1º ministro (08.01)
O presidente Jair Bolsonaro envia carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e afirma que, no programa brasileiro de imunização, estão as vacinas da Bharat Biotech.
Ofício (18.01)
Ministério envia ofício a presidente da Precisa informando querer dar início a tratativas comerciais para aquisição de lotes.
Contrato assinado (25.02)
Contrato é assinado entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos para a aquisição de 20 milhões de doses.
Nova viagem (05.03)
Maximiano faz nova viagem à Índia. É recebido outra vez na Embaixada do Brasil em Nova Déli. O empresário fala em 32 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde.
Pedido rejeitado (31.03)
Anvisa rejeita pedido de importação de doses formulado pelo ministério, por falta de documentos básicos por parte da empresa responsável.
No mesmo dia, um servidor de área estratégica do Ministério da Saúde presta depoimento ao MPF em que relata pressão atípica para importação das doses, inclusive com ingerência de superiores junto à Anvisa.
Fim do prazo (06.05)
Acaba o prazo estipulado em contrato para a entrega dos 20 milhões de doses. Nenhuma dose chegou ao Brasil.
Pedido aprovado (04.06)
Anvisa aprova pedido de importação de doses, mas com restrições, diante da necessidade de estudos extras de efetividade. Nenhuma dose chegou ao Brasil.
Indícios de crime (16.06)
MPF aponta indícios de crime no contrato e envia investigação para ofício que cuida de combate à corrupção.
Raio-x:
Valor do contrato: R$ 1,61 bilhão
Doses a serem entregues: 20 milhões
Valor individual da dose: US$ 15 (R$ 80,70)
Preço das doses de outras vacinas contratadas:
Sputnik V: R$ 69,36
Coronavac: R$ 58,20
Pfizer: US$ 10 (R$ 56,30)
Janssen: US$ 10 (R$ 56,30)
AstraZeneca/Oxford: US$ 3,16 (R$ 19,87)
Quem é quem:
– Precisa Medicamentos: é a empresa que assina o contrato com o Ministério da Saúde. Representa no Brasil a farmacêutica indiana Bharat Biotech.
– Francisco Emerson Maximiano: sócio-administrador da Precisa Medicamentos. É o empresário que foi à Índia para viabilizar a representação da vacina Covaxin no Brasil. Também se apresentou como representante de clínicas privadas de vacinação. Maximiano é presidente da Global Gestão em Saúde.
– Global Gestão em Saúde: a empresa foi acionada na Justiça pelo MPF por pagamentos antecipados e indevidos feitos pelo Ministério da Saúde. O valor soma R$ 20 milhões. Segundo a ação de improbidade, a Global não forneceu medicamentos para doenças raras e, mesmo assim, recebeu pagamentos antecipados. Catorze pacientes morreram, segundo o MPF.
– Tenente-coronel do Exército Alex Lial Marinho: do grupo próximo do general Eduardo Pazuello, e indicado por ele ao cargo, Marinho foi coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde. Parte da pressão para tentar a importação da Covaxin, apesar da falta de documentos junto à Anvisa, partiu do tenente-coronel, segundo depoimento de servidor ao MPF.
Mateus Vargas, Renato Machado e Julia Chaib/Folhapress