No último dia 27 de dezembro, o Diário Oficial da União publicou uma portaria do Ministério do Desenvolvimento Regional reconhecendo a situação de emergência em 86 municípios baianos afetados pelas fortes chuvas, entre os quais Nilo Peçanha e Taperoá, ambos no Baixo Sul.
Em tempos normais, sem enchentes ou pandemia, eles estariam preparando a essas alturas do ano o desfile da Zambiapunga, uma manifestação folclórica com máscaras e roupões coloridos, inspirados em tradições de Angola e da região do Congo.
No verão de 2018, um grupo de Zambiapunga de Taperoá esteve em Salvador para participar do Movimento Cultural Palhaços do Rio Vermelho, uma manifestação iniciada despretensiosamente no fundo da casa da servidora pública Lúcia Menezes, junto com o irmão, o artista visual Ruy Santana, e um grupo de amigos. O plano deles era muito bom: resgatar o espírito lúdico da festa.
Em 10 anos, o evento acabou se tornando uma importante manifestação cultural que remete não apenas aos velhos carnavais soteropolitanos quanto a festas populares do interior.
Registrada em um documentário de 25 minutos, Palhaços do Rio Vermelho – o curta, a história vai ser exibida pelo Canal Brasil no dia 28 de fevereiro, terça-feira de Carnaval, às 13 horas.
Há chances de que o filme, com roteiro de José Araripe Jr. e direção de Lilih Curi, volte à grade da emissora em março. Os produtores já sonham com um longa-metragem focando cidades do interior que têm manifestações culturais que participam da folia pré-carnavalesca na capital.
“Esse é o momento do curta, mas justamente colocamos a expressão o curta, porque pretendemos fazer um longa”, explica Lilih Curi.
A história do grupo remonta a 1986, quando Lúcia, Ruy e seus amigos brincavam o Carnaval no então único circuito oficial, o da Avenida Sete. “Estávamos insatisfeitos com a perda do valor da fantasia na festa mais popular da cidade para o abadá”.
O grupo decidiu se vestir de palhaço para brincar e fez sucesso com as crianças, uma iniciativa que cresceu no ano seguinte com a adesão de mais amigos, além de parentes que viviam em outros estados.
Em 1999, quando o Bloco da Cidade saiu com foliões mascarados para comemorar os 450 anos de Salvador, Ruy foi sozinho, fantasiado de palhaço. A convite de Margareth Menezes, que tornaria os Mascarados um bloco perene, formou-se nos anos seguintes uma ala de palhaços. Mas a experiência durou até 2009.
Suplício
Com o bloco cada vez mais cheio e o trecho da chegada em Ondina se tornando um suplício, os amigos se reuniram num almoço e decidiram que, a partir de 2010, os palhaços se reuniriam no Rio Vermelho, bairro da maioria, no sábado anterior ao Carnaval para fazer o resgate do Bando Anunciador dos Festejos do Rio Vermelho, que na década de 1950 reunia foliões em cima de um caminhão, com rainha e princesa. “Os moradores se cotizavam e faziam eventos pré-carnavalescos”, cita Ruy.
No primeiro ano dos Palhaços do Rio Vermelho, o artista plástico chamou uma fanfarra de amigos, conseguiu com Bel Borba a cessão da escultura de um cachorro que decora o Largo de Santana para colocá-lo em um carro alegórico, com um nariz de palhaço, uma ala circense e um grupo de Zambiapunga. “Eu sempre fiz questão de trazer esses grupos culturais. A gente tinha a Caminhada Axé, que era uma das coisas mais bonitas do Verão. Hoje tem o Fuzuê e o Furdunço, que são parecidos, mas a Caminhada trazia manifestações artísticas de todo o interior. Isso vem perdendo força”.
Até por isso, Ruy faz questão de demarcar diferenças entre os Palhaços e os bloquinhos de rua que surgiram nos últimos anos, seja no Santo Antonio Além do Carmo, seja em Ipanema ou no centro de São Paulo. “Não é o Bloco dos Palhaços, é o Movimento Cultural Palhaços do Rio Vermelho. E eu, como conheço os grupos do interior, sempre visito os caras na sede”.
O movimento tem ainda o hábito de celebrar personalidades importantes do bairro e da cidade. Em 2010, no desfile inicial, a homenageada foi Dinha do Acarajé, morta em 2008 depois de uma parada cardíaca, que foi representada pela sua filha Claudinha, coroada rainha da folia. Já foram coroados rei ou rainha Jau, Margareth Menezes, Armandinho, Lazzo, Carla Visi e Gerônimo, Márcio Mello e Nikima.
Pelos cálculos do artista, no último pré-Carnaval, o de 2020, o grupo saiu com mais de 10 mil pessoas. Uma adesão que tornou a festa, a seu ver, irreversível.
Mesmo que por questões financeiras não seja possível contratar fanfarra ou atrações musicais, as pessoas de toda a cidade, quando a pandemia acabar, vão ocupar as ruas do Rio Vermelho no sábado que antecede o Carnaval.
Iemanjá
Quando a Festa de Iemanjá é muito próxima à folia, os Palhaços antecipam sua festa e saem não uma semana, mas 15 dias antes da grande festa. Sempre contando com a boa vontade de comerciantes vizinhos. “A gente consegue lanche na padaria para os músicos, ajuda dos bares, do depósito de refrigerante. Mais recentemente, conseguimos o patrocínio da Prefeitura e da Bahiagás”.
Para aumentar a receita, a organização do movimento vende camisetas alusivas ao movimento. A cada ano, o design é feito por um artista visual diferente, como Bel Borba, Ray Vianna e Cau Gomez, chargista de A TARDE, por exemplo.
Lúcia Menezes afirma que nesses dois últimos anos sente a falta de estar na rua e lamenta a impossibilidade de apresentação dos grupos parceiros. “Eles aceitam participar do desfile apenas com uma ajuda de custo já que não temos recursos financeiros para pagar cachês”. O grupo recorre ao antigo Livro de Ouro, tradicional caderninho em que se recolhem assinaturas para aferir quem entre moradores e comerciantes vai contribuir com a festa.
Foliã à moda antiga, nos últimos anos Lúcia só se anima a sair um dia. “Meu carnaval é o desfile dos Palhaços do Rio Vermelho. Já curti muito blocos, camarotes etc, mas hoje só pela TV”, declara.
Com mais um ano sem programação de rua e com o documentário sobre os Palhaços sendo exibido na telinha na terça-feira de Carnaval, ela vai ter mais um motivo para ligar o aparelho este ano.
Por Gilson Jorge/ ATarde /