Ivete Sangalo quer voltar para o futuro. O filme clássico de ficção científica é o que inspira a criação de seu trio elétrico e sua fantasia para o Carnaval. Não só porque a estética que glorifica a tecnologia é uma de suas favoritas, mas principalmente porque devemos, diz ela, aproveitar a maior festa popular do mundo para expurgar o retrocesso.
“Nunca estivemos tão sedentos pelo futuro. Entramos num ano de maior esperança e possibilidades. Saímos de um tempo de retrocesso e entramos em 2023 com o pé direito, onde há mais esperança, e vamos caminhar para frente.”
A afirmação pode ser interpretada como uma celebração do fim do governo de Jair Bolsonaro. É que Ivete não costuma dar nome aos bois. Ao lamentar a morte de 500 mil brasileiros na pandemia, no ano retrasado, ela disse que não era “sobre partidos”, mas “sobre humanidade”.
Acusada de ficar em cima do muro, a cantora respondeu que o governo de Bolsonaro não a representava “nem mesmo antes de a ideia dele existir”, o que fez sua popularidade nas redes sociais crescer 51%, de acordo com o instituto de pesquisas Quaest.
Foi então que Ivete passou a atacar Bolsonaro. Ao fim do mesmo ano, num show em Natal, no Rio Grande do Norte, a cantora incentivou o coro de insultos ao ex-presidente pedindo que a plateia gritasse mais alto. O mesmo aconteceu no Rock in Rio do ano passado, quando ela reagiu ao coro lulista dizendo que, na eleição, íamos “mudar tudo”.
Agora, Ivete lança seu primeiro disco inteiro de inéditas em quase dez anos, o EP “Chega Mais”, gravado em janeiro em Salvador num show para convidados globais e fãs. Com cinco faixas que vão do samba-reggae ao pagodão baiano —entre elas “Cria da Ivete”, que virou hit no TikTok antes mesmo de ser lançada—, o projeto vai abrir o Carnaval de Salvador, com transmissão ao vivo pela Globo, para depois virar uma turnê Brasil afora.
Ao receber a reportagem para apresentar o novo trabalho, a cantora, que fez 50 anos no ano passado e este ano comemora 30 anos de carreira, discute o envelhecimento, a perda de espaço do axé, sua carreira internacional e seus posicionamentos políticos.
Estamos a um mês do Carnaval. Como está se preparando? Antes, tinha uma concentração maior, fazia atividade física, buscava equilíbrio emocional. Só que tive filhos, né? Aí metade da preparação caiu, mas nunca parei. Se tenho tempo, fico mais de duas horas na academia. Se não tenho, faço treinos otimizados de meia hora.
E a alimentação? Aprendi a tirar dela coisas que me maltratam, como tudo que tem glúten. Não é sobre engordar ou não. É que o glúten faz mal. Me sentia muito desconfortável, com dor abdominal, então não como e isso facilita a cantoria, porque não tenho refluxo. Evito açúcar e coisas mais pesadas, como feijoada e tudo o que todo mundo ama.
Ano passado, a Globo comemorou seu aniversário com um comercial dizendo que nem parecia que você ia fazer 50 anos, o que gerou acusações de etarismo. Como assim não parece? Nunca fui vítima de etarismo e nunca me vitimizei por nada. Completar 50 anos é uma vitória. É saber que eu existo, e existo com saúde. Envelhecer é viver. Aquele que não completa 50 anos é o que já se foi. Mas também não sacrifico ninguém. A gente está aprendendo. São discussões que não tínhamos 30 anos atrás. São atos falhos, mas sem a intenção de destruir.
O axé parece ter perdido espaço e virado uma música sazonal, que só toca no Carnaval. Como você vê isso? Quando a música da Bahia ocupava os dez primeiros lugares das mais tocadas, ela se sobrepôs a outro segmento que também já esteve ali. É um rito que se repete. Não é exclusivo da música da Bahia, salvaguardando o fato de eu ter que brigar para ter folga. Não concordo que seja sazonal. É que, no verão, toda música fortalecida por movimentos populares toma uma proporção maior.
O público das micaretas também parece ter mudado. Hoje ele é majoritariamente formado por homens gays. Mas é porque você trata gay como uma pessoa fora do público, e o gay é o público. Não teve mudança de público. O gay é essencialmente o público. É que, antes, essa identificação não era contemplada de forma democrática.
Você cantava muito em inglês, muito em espanhol. Canto ainda, meu amor.
Por causa de Anitta, muito se falou da exportação da música brasileira. Hoje você faz mais shows no Brasil. Não tem mais vontade de se internacionalizar? Como Anitta, ninguém fez. Mas ela quis isso. Eu não quis. Não imagino o volume de trabalho e de quantas coisas ela precisou abrir mão. Na minha visão, minha carreira internacional está consolidada, porque o que quero é ir a qualquer lugar do mundo e ter quem me ouvir. Existem outras proposições. Lotar o Madison Square em Nova York é lindo, mas nada se compara a um Maracanã cheio.
Como surgiu seu novo disco, ‘Chega Mais’? Foi uma loucura. Acordei no dia 20 de dezembro, fui para o escritório e disse que íamos gravar um EP ao vivo. Perguntaram se estava maluca. Disse que, se estivesse, teriam que ficar malucos comigo.
É um disco que parece ter mais eletrônico. Quando a gente vai mixar uma música, elementos acústicos perdem o volume. Queria aqueles graves de paredão, então a gente botou bumbos eletrônicos, que é uma coisa mais moderna e uma atualização da minha música.
Ao gravar este disco, no início de janeiro, você exaltou a escalação de Margareth Menezes para o Ministério da Cultura. Na primeira vez que meus pais me deixaram sair para o Carnaval de rua, dei de cara com Margareth. Daquele dia em diante, ela tomou conta de mim.
Sua proximidade com Margareth pode levar a uma aproximação sua do debate político? Os debates existem. Não necessariamente de forma pública, mas existem. Margareth é uma mulher competentíssima, para além de ser cantora. Tem uma experiência de vida que vai somar e trazer elementos que estão fora da nossa compreensão. Ela tem muita convicção das coisas em que acredita, e o que ela acredita é muito bom, então ela vai nos ensinar muita coisa.
Antes, você dizia que preferia não falar de política porque não entendia de política. O que mudou? No início, tinha uma resistência a falar sobre isso porque de fato não tinha compreensão. Mas entendi que política você faz no dia a dia. Sou uma mulher praticante de uma política de atuação, usufruindo do potencial de artista para articular, só que mais na prática. Mas acredito nos debates. Eles são fundamentais para trazer à superfície temas que devem ser discutidos. Agora, prefiro reservar para mim o lugar de ouvir e aprender. Margareth tem muito mais a dizer —e eu, a ouvir.
Teve algum medo de se posicionar contra o governo Bolsonaro? Não. A polarização é um entrave. Se os dois lados não conversam, existe um entrave. Não temos que ter medo. Isso é um grande entrave que precisa ser desfeito para voltarmos a dialogar de forma civilizada. Quando está muito polarizado, tudo o que se diz é só lenha na fogueira. Você vai jogando madeira, madeira, madeira, e vai queimando.
Era por isso que você costumava não ser mais explícita em relação à política? Eu já disse que não sou vocal. Isso não faz de mim uma pessoa inoperante. Esta foi minha escolha, e eu respeito a minha escolha. A gente precisa se respeitar. Faço trabalhos muito substanciais, que se relacionam acima de tudo com crianças, a exemplo do Hospital Martagão Gesteira da Bahia. Às vezes, está tão no subterrâneo de vocês, que vocês não têm conhecimento.
Em 30 anos de carreira, você já cantou, atuou, apresentou. O que falta fazer? Estou montando o Instituto Ivete Sangalo para canalizar minha força artística para acolher o máximo de pessoas possíveis, principalmente crianças, porque, quanto mais a gente faz, mais a gente percebe o quanto ainda tem para fazer.
Pedro Martins, Folhapress