Enquanto Gilberto Gil canta –acompanhado de filhos e filhas, netos e netas– os versos de “Babá Alapalá”, passam pelo telão que toma todo o fundo do palco imagens que carregam a comunhão inequívoca de álbum de família.
Testemunhado nesta sexta-feira (16), na casa de shows carioca Qualistage, na estreia nacional da turnê “Nós, a Gente”, o momento sintetiza o espírito do espetáculo, que chega a São Paulo na semana que vem como atração do Festival Turá, no Ibirapuera.
A ancestralidade de que tratam os versos (“O filho perguntou pro pai/ Onde é que tá o meu avô?”) é vestida pela alegria e exuberância do arranjo e do ritmo que apontam para a África. “Ancestralidade é a conversa lá de casa”, diz Gil ao fim da canção.
A mesma alegria e exuberância está presente nas fotos de família do telão, que ao longo do show se desdobram em imagens da Bahia, do Rio, dos Filhos de Gandhy, dos Doces Bárbaros, de Rita Lee, enfim, da família estendida. No show, que já rodou a Europa, tudo traz a marca da pureza da positividade do lar, do sentido de pertencimento, e do conforto que isso traz.
Gil e os seus afirmam no palco que família é a unidade na qual várias individualidades se cruzam, histórias se costuram, gerações se harmonizam sob o mesmo teto. Ali está Preta Gil, que passa por um tratamento contra o câncer e uma separação.
“Eu sou preta, eu sou gorda, eu sou bissexual. Eu estou me tratando de um câncer. Eu estou solteira. E eu sou filha do imortal Gilberto Gil”, diz a certa altura, sob efusivos aplausos, enquanto canta “Vá se benzer”, que gravou com Gal Costa.
Há o neto Sereno, de seis anos, levando a sério a brincadeira de ser músico. “Começando cedo com as guitarras de brinquedo”, diz Gil. Está ali também a filha Nara, cantando uma música que seu pai fez para a mãe, “Amor Até o fim”. Todos os caminhos individuais potencializam a força do coletivo, amparada num repertório cujo núcleo são as canções mais esperançosas e festivas do patriarca.
Já nos primeiros instantes do show se revela o tom que dominará a noite, com a luminosidade de “Barato Total” (“Quando a gente está contente/ Tanto faz o quente/ Tanto faz o frio”), seguida do ijexá “Serafim”, igualmente solar, e da afirmativa “Avisa Lá”, do Olodum.
Ou seja, uma pequena celebração da Bahia, exposta em imagens de beleza turística, de cores saturadas, o que mais tarde se repetirá nas cenas do Rio, enquanto Gil e sua neta Flor cantam “Garota de Ipanema”.
As imagens e a música não deixam dúvidas, portanto: não há no show contraponto à alegria. Mesmo “Deixar Você”, que documenta um possível fim de amor, tem o foco na beleza e na ação positiva de ação contra o fim: “Que a luz nasce da escuridão”. E a crítica social de “Nos Barracos da Cidade” se dá pelo apelo dançante e pelo refrão explosivo que a plateia canta a plenos pulmões: “Gente estúpida/ Gente hipócrita”.
Musicalmente, a família sustenta a proposta do espetáculo, sobretudo na figura do diretor musical Bem e do trio Francisco, João e José, que integram os Gilsons –o repertório inclui canções gravadas pelo grupo, como “Várias Queixas”. As vocalistas Preta, Nara e Flor alternam momentos de destaque. Mariá Pinkusfeld, nora de Gil, completa o quarteto vocal.
O neto Bento também faz bonito quando fica sozinho no palco com o avô em “O Pato”, homenagem a João Gilberto, e “Metáfora” –as duas levadas no tamborim e no violão, com a dupla se alternando nos instrumentos. Completam a formação os netos Pedro, Gabriel e Lucas na percussão, além dos pequenos Sereno, Nino, Dom e Sol de Maria, bisneta de Gil. Bela faz uma participação dançando em “Andar com Fé”.
Gal Costa e Rita Lee foram lembradas. A primeira, com “Esotérico”, do repertório dos Doces Bárbaros, quarteto que reuniu na década de 1970 a cantora, Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Já a paulistana foi homenageada com “De Leve”, versão de “Get Back”, dos Beatles, que Gil e ela fizeram juntos para o show “Refestança”, que os uniu em 1977, e com “Ovelha Negra”, entoada sobretudo pelas mulheres da banda, uma escolha significativa no contexto de celebração a Rita.
Por fim, já no bis, “Aquele Abraço”, feita por Gil para louvar a beleza da existência mesmo sob o horror da prisão arbitrária da qual ele acabara de sair, é ressignificada pelos abraços familiares que passam pelo telão.
Manifestações de carinho fraternas, paternas, maternas, intergeracionais e intrafamiliares apontam o sentido final do espetáculo: o núcleo, a casa, onde se enraíza e a partir de onde se espalha. A régua e o compasso, enfim.
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