A tentativa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de montar uma base no Congresso Nacional abriga atualmente uma disputa interna de poder entre os parlamentares e ainda carece de testes que explicitem a real dimensão do apoio.
Desde a sua vitória sobre Jair Bolsonaro (PL), Lula fez dois movimentos políticos relevantes em direção ao Legislativo, que também patrocinou por conta própria outros dois acontecimentos cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis. Esses quatro lances moldam, até aqui, a história congressual dos primeiros cem dias da terceira gestão de Lula.
Da parte do petista, ele optou por não confrontar a reeleição do até então bolsonarista Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara, o que permitiu ao deputado bater o recorde de votos em sua recondução, em fevereiro, com o apoio de 464 dos 513 deputados.
Ao mesmo tempo, Lula retomou para o governo a tarefa de gerenciar a distribuição de cargos e verbas das emendas parlamentares em troca de apoio na Câmara, missão que Bolsonaro havia terceirizado a Lira desde 2020.
Em outras palavras, o governo conta com a boa vontade de Lira na montagem da pauta de votações e em outras frentes —ele não pautou votações sensíveis até agora justamente por não haver segurança de vitória—, mas o presidente da Câmara não é mais o responsável por montar a base governista.
Paralelamente às ações patrocinados pelo Executivo, o próprio Congresso moveu suas peças, em uma disputa interna de poder cujos resultados e consequências ainda estão em aberto.
Em primeiro Lugar, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também aliado de Lula, trava uma queda de braço com Lira sobre a tramitação das medidas provisórias, uma disputa cujo desfecho definirá o tamanho do poder de cada presidente sobre elas.
Pacheco pretende retomar o rito constitucional de comissões mistas de deputados e senadores como porta de entrada das MPs —mecanismo usado pelo Executivo para legislar, com imediata força de lei, mas que precisa ser ratificada pelos parlamentares.
Lira faz pressão para manter o rito excepcional adotado durante a pandemia da Covid, de começo da tramitação das MPs direto no plenário da Câmara, o que ampliaria consideravelmente o seu poder sobre elas.
Paralelamente a essa disputa, o presidente da Câmara viu surgir internamente a formação de um bloco com 142 dos 513 deputados, num racha do centrão. Até então integrante da trinca ao lado de PL e PP, o Republicanos aderiu a MDB, PSD, Podemos e PSC, formando a maior força política da Casa.
Lira tenta formar outro bloco que uniria PP, União Brasil e outras legendas, mas até agora não houve formalização.
Com isso, o cenário numérico da base de Lula na Câmara tem, de maneira sólida, apenas cerca de 130 deputados do PT e outros partidos de esquerda.
Os demais deputados da possível base lulista são atraídos, em suma, pela velha prática de distribuição de cargos da máquina pública federal em Brasília e nos estados, além do direcionamento a esses parlamentares das verbas do Orçamento federal.
O ritmo e a quantidade da liberação desses cargos e verbas define o grau de apoio de boa parte desses partidos de centro e de direita.
Um primeiro núcleo de apoio de Lula fora da esquerda foi criado por MDB, PSD e União Brasil, que receberam nove ministérios. No entanto, é certo que haverá dissidências mesmo assim nessas legendas.
O governo conta também com algum apoio no PP de Lira, no Republicanos, que agora está aliado em bloco a MDB e PSD, e até no PL de Jair Bolsonaro —a conta é que de 20 a 30 dos 99 deputados da sigla do ex-presidente devem votar com os interesses do Palácio do Planalto.
Com isso, as apostas do tamanho real da base de Lula, na Câmara, variam de 200 a 350 deputados, a depender da fonte de informação ouvida.
“É um erro afirmar que o governo não tem base. Como não houve votação muito relevante, a base não foi testada”, diz o líder do PT, Zeca Dirceu (PR), que aposta em um contingente governista de 350 parlamentares, número que daria com folga para aprovar mudanças na Constituição (308).
“Se o Bolsonaro, com toda sua incompetência e estupidez, conseguiu ter base, óbvio que Lula terá uma base muito mais ampla e estável. O Lira tem ajudado. O governo detém a execução do Orçamento através dos ministérios. O Bolsonaro terceirizou governo, não governava, na verdade. Lula governa, lidera.”
Outros integrantes da suposta base, porém, e que preferem falar sob condição de anonimato, são bem mais céticos, afirmando que hoje o governo não teria condições de aprovar um simples projeto de lei.
No Senado, a situação do governo se afigura um pouco mais confortável, já que o PSD é a maior bancada (16 cadeiras) e Pacheco conseguiu se reeleger com 49 dos 81 votos, derrotando uma acirrada oposição bolsonarista.
Na próxima semana, serão instaladas quatro comissões mistas para análise de MPs enviadas pelo governo Lula.
Diante do impasse da tramitação das matérias, foi feito um acordo entre Executivo e Legislativo para a instalação das comissões para analisar a medida provisória que recriou ministérios, a que instituiu o novo Bolsa Família, a do novo Minha Casa, Minha Vida e a que muda a regras do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Federais).
A apreciação dessas matérias em plenário, porém, deve ocorrer apenas em maio —e serão as primeiras votações de relevo do Congresso no governo Lula. Depois, entrará em votação o novo arcabouço fiscal do governo.
Em café da manhã com jornalistas na quinta (6), Lula afirmou que até hoje não sentiu “nenhuma dificuldade com o Congresso Nacional”, mas admitiu que “ainda não tivemos um teste” e disse que vai “esperar a primeira votação de interesse do governo”.
“É muito difícil conversar num sistema de coalizão política com a quantidade de partidos que temos. É muito mais fácil fazer coalizão num mundo em que tenha três partidos políticos, quatro partidos políticos. Porque é muita gente para você conversar e dentro dos partidos também tem muita divergência”, disse, em relação à base do governo.
O petista cobrou Pacheco e Lira para a solução do impasse sobre a tramitação de MPs.
“Essa base não foi testada ainda em nenhuma votação. […] Tenho certeza que os dois [Pacheco e Lira] vão se colocar de acordo para começar a votar as coisas que precisam ser votadas, porque o país não pode ficar parado”, afirmou Lula.
A história mostra que crises, desarticulação e até eventualmente derrotas são comuns no histórico de cem dias dos presidentes da República desde a redemocratização, mesmo naqueles que contavam com uma base formal robusta.
Foi o caso, por exemplo, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que venceu a eleição de 1994 em primeiro turno, assumindo no embalo do sucesso do Plano Real.
Apesar do apoio majoritário no Congresso, em seus primeiros cem dias ele sofreu uma expressiva derrota ao se ver forçado a elevar o salário mínimo de R$ 70 a R$ 100 por pressão do Congresso —o tucano era contra, sob o argumento de ameaça de desequilíbrio nas contas da Previdência.