Brasil subsidia pouco o agronegócio, mas setor público foi chave para avanço

O total de subsídios públicos destinados ao agronegócio no Brasil despencou nas últimas décadas, na contramão do aumento vertiginoso da produção e da produtividade.

Na comparação com outros países fortes na área, o Brasil é o que hoje menos subsidia o setor, levando em conta a razão entre o total produzido e o dinheiro público empregado na atividade.

Especialistas apontam a escassez de subsídios diretos nos últimos anos, o fato de não ter sido muito protegido por tarifas e de ter ficado relativamente livre de ingerência política como chaves para o sucesso do agronegócio.

No passado, no entanto, o setor público foi fundamental para gerar as condições para o desemprenho atual, sobretudo por meio da criação, há 50 anos, da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

Nos governos João Figueiredo (1979-1985) e José Sarney (1985-1990), o Brasil despendia cerca de 5,6% do Orçamento na função Agricultura, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Com Itamar Franco (1992-1995) e FHC (1995-2003), os dispêndios caíram à metade, para cerca de 2,2% do Orçamento.

Foi a partir desse período, porém, que o agronegócio deslanchou. No início dos anos 1990, o Brasil ocupava 39 milhões de hectares para produzir 58,3 milhões de toneladas de grãos. Hoje, utiliza 78 milhões de hectares (+100% em relação a 1990) e produz 316 milhões de toneladas (+445%), segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária.

Nos últimos 20 anos, a produtividade total dos fatores da agricultura brasileira cresceu 3,2% ao ano, em média. Na China, a alta foi de 2%; nos EUA, de 0,5%.

Entre os grandes produtores globais, o Brasil é o que menos emprega recursos públicos proporcionalmente ao volume produzido, na razão de 1,3%. A campeã em subsídios é a União Europeia, com 19,3%, seguida por China (12,2%), EUA (11%) e Rússia (6,7%).

No final de junho, o governo Lula anunciou recursos de R$ 364,2 bilhões para o Plano Safra, de apoio à produção de médios e grandes produtores rurais até junho de 2024. Outros R$ 77,7 bilhões serão investidos na agricultura familiar. Desse total, no entanto, só pequena parcela terá juros subsidiados, sobretudo para a agricultura familiar e de baixo carbono

Na safra 2022/2023, segundo cálculos de Xico Graziano, engenheiro-agrônomo e professor da FGV, mesmo que somando o valor destinado à equalização dos juros aos orçamentos dos ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, o gasto público com o setor ficou próximo de 2% em relação ao valor bruto da produção.

“Criou-se um mito baseado na economia do passado [de que o agro seja subsidiado], quando realmente o setor rural recebia vultosos benefícios do Estado”, diz Graziano. “Hoje, o agro segura a economia com suas próprias pernas”.

Para Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados, o fato de o agronegócio não ter contado com tanta ajuda e interferência estatais explica sua trajetória de sucesso.

“O agro surgiu antes do [presidente] Getúlio Vargas [1934-1945 e 1951-1954] e, por isso, já era independente. Tem raízes históricas para ter conseguido, com força política, evitar uma interferência mais forte de governos”, diz Vale.

“Na época do Getúlio, houve um entendimento de que quem faz crescer a economia não é o agro, mas a indústria, e todos os incentivos, subsídios e proteções acabaram sendo criados para a indústria. Era aquela ideia desenvolvimentista de que teríamos de proteger a indústria para depois virar uma potência exportadora. A indústria acabou sendo vítima dessas ideias do passado.”

Vale destaca que uma das grandes contribuições do Estado para o agro foi a criação da Embrapa, em 1973, durante o regime militar.

“Ao longo da história, o Brasil tinha uma vocação para o café, mas estava crescendo e não havia sentido em importar produtos agrícolas. Daí nasce o movimento para fazer crescer a produção interna, a partir dos anos 1970”.

Um dos responsáveis pela criação da Embrapa é o economista José Pastore, professor aposentado da Faculdade de Economia e Administração da USP. A convite do então ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, no governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) ele teve a incumbência de preparar pesquisadores de alta qualidade na área.

“A proposta apresentada ao Cirne incluía a formação de uns mil doutores e uns mil mestres nas várias áreas da pesquisa agrícola, nas melhores universidades do mundo”, conta Pastore.

Com experiência anterior na formação de pesquisadores na área econômica e tendo estudado em universidade nos EUA, Pastore e demais idealizadores da Embrapa foram atrás de dinheiro em organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de fundações, como Ford e Rockfeller.

“As primeiras levas de estudantes bolsistas começaram entre 1974 e 1976. Depois de uns dez anos, a Embrapa já tinha um time de primeira qualidade para pesquisar produtos, solos e climas”, afirma. “Antes, a pesquisa agrícola no Brasil era feita por funcionários públicos, que pesquisavam o que queriam.”

Segundo Pastore, o fato de os pesquisadores estudarem em universidades de ponta, sobretudo nos EUA, incutiu no corpo técnico da Embrapa “uma ética de trabalho e zelo”. “Além das pesquisas que traziam, vinham também muitos livros que ajudaram no desenvolvimento da Embrapa.”

Ao comemorar 50 anos de existência neste ano, a Embrapa contabilizou a formação de 2.000 doutores dedicados ao setor agrícola, o dobro do que almejavam seus idealizadores.

Mas o grande boom do agronegócio só ocorreria com a ascensão da renda chinesa a partir de 2000, quando o PIB do país era de US$ 1,2 trilhão e saltou a US$ 6 trilhões em 2010, crescendo entre 8% e 14% ao ano. O PIB per capita foi de US$ 1.053 para US$ 4.550. Mais ricos, os chineses passaram a comer mais e melhor.

“Quando a China chegou, o Brasil estava preparado. Primeiro foi a soja, e agora temos pela frente carnes e milho, que será a nova soja. A China vai ter de importar milho como importava soja, e o único país com escala para abastecê-la é o Brasil”, diz Vale.

O fato de o setor também ser politicamente forte (a bancada ruralista no Congresso tem hoje 302 deputados e 45 senadores) blindou o setor de taxações, como na Argentina.

No país vizinho, o governo tributa exportações agrícolas com alíquotas de 7% a 33% e impede a venda ao exterior de alguns cortes de carne para garantir o abastecimento.

No passado, Brasil e Argentina competiam de perto na área de grãos. Hoje, o Brasil produz mais que o dobro na comparação com o país vizinho (316 milhões de toneladas, ante 140 milhões).

Segundo a Sociedade Rural Argentina, o Estado retirou cerca de US$ 175 bilhões em impostos da exportação argentina em 21 anos, reduzindo a capacidade de investimentos do setor.

Fernando Canzian/Folhapress