“Santa Luzia, conservai a luz dos meus olhos para que eu possa ver as belezas da criação. Conservai também os olhos de minha alma, a fé, pela qual posso conhecer o meu Deus, compreender os seus ensinamentos, reconhecer o seu amor para comigo e nunca errar o caminho que me conduzirá onde vós, Santa Luzia, vos encontrais, em companhia dos anjos e santuário. Santa Luzia, protegei meus olhos e conservai minha fé. Amém”.
A oração a Santa Luzia ecoa entre fiéis que buscam proteção e expressam gratidão à santa padroeira dos oftalmologistas e daqueles que enfrentam desafios de visão. A devoção atinge seu ápice na Igreja de Santa Luzia do Pilar, localizada no bairro do Comércio, durante o tríduo que se inicia em 10 de dezembro, culminando nas festividades nesta quarta-feira (13), dia dedicado à santa. Neste ano de 2023, a temática da celebração gira em torno de “Vocação, Missão e Testemunho”.
O pároco da igreja, padre Renato Minho, que assumiu o cargo há quatro anos, compartilha a rica história do local. A igreja teve sua edificação impulsionada pelos espanhóis que chegaram a Salvador em 1718. O estilo rococó e barroco da arte na igreja é enriquecido por telas pintadas por José Joaquim da Rocha, cujo talento também adornou outras igrejas notáveis da região.
Entre seus alunos está um negro escravizado: José Teófilo de Jesus, que demostrou habilidades para as artes plásticas. Com isso, ele foi alforriado e enviado à Lisboa, para que se aperfeiçoasse nas artes, retornando à Salvador e sendo o responsável pela pintura de 17 telas que fazem parte do acervo do Pilar.
A igreja passou sete anos fechada entre os anos 1990 e 2000. Sua última reforma, em 2011, precedeu a reabertura em 2012, após processos de requalificação. Atualmente, a igreja recebe visitantes de terça a sexta, das 9h às 15h, aos sábados das 9h às 12h, e aos domingos a partir das 6h30, para a missa das 9h.
Devoção – A devoção a Santa Luzia ganhou destaque na igreja após um período inicial dedicado exclusivamente a Nossa Senhora do Pilar. A história da santa remonta ao século IV, quando, após resistir a torturas e manter sua fé cristã, foi martirizada.
O padre lembra que Santa Luzia muito jovem se consagrou a Deus, com voto de castidade e pureza, mas no tempo das perseguições no Império Romano. “Oriunda de família cristã e rica, após a morte do pai, ela herda uma fortuna dividida entre ela e a mãe. Além de rica, a sua beleza e status criaram desejos. Então, um cidadão a corteja e chega uma hora que ela diz: ‘não quero, vou me consagrar a Jesus’”, diz o pároco.
Por isso, ela é denunciada ao Império, sofrendo várias torturas. Aí lhe arrancaram os olhos, e a história conta que Deus lhe devolve a visão. Ela pega todo o dinheiro da herança, dá aos pobres, e passa pela tortura definitiva: a decapitação. “A devoção nasce através da sua resistência. Arrancam os olhos e Deus devolve os olhos ainda mais belos. É o testemunho para que o sangue derramado floresça novos cristãos”, destaca o clérigo.
O padre reforça que a Igreja de Santa Luzia do Pilar é uma casa feminina, pilar de fortaleza, coragem e disposição. “A fonte que nós temos aqui em Salvador abastecia os navios e parte da cidade e a saída era na rua. Por providência, quem estava aqui trouxe a saída da fonte para dentro da igreja. Ela está num lugar privado, mas aberta ao povo. Conta-se que depois da chegada da imagem de Santa Luzia, um cidadão com deficiência visual bebeu da água e lavou o rosto. Ele volta a enxergar e sai contando. É bíblico. O fato não foi registrado, não se tem o nome, mas aconteceu”, relata o padre Minho.
Origem – De acordo com o historiador Rafael Dantas, para falar sobre a festa de Santa Luzia do Pilar, é necessário voltar ao século XVII, quando uma antiga capela na região da Gamboa era dedicada a ela. Com o passar do tempo, a pequena capela foi transferida, indo para o local onde hoje está a igreja em louvor à santa.
Ali, segundo Dantas, é onde começa, de fato, a concentração da devoção ligada à Santa Luzia e a festa começa a ganhar as características dos festejos atuais. A partir do início do século XX, a Igreja de Santa Luzia do Pilar tem a visita de fiéis. Nesse contexto, a área da fonte ganha importância por conta dos milagres que foram relacionados àquelas águas.
O historiador conta que a igreja foi erguida no entorno da fonte, com o necrotério/ossuário ao lado, uma construção com características do rococó com o neoclássico do século XIX. Ele observa que toda a iconografia da Igreja e das representações religiosas faz menção à história e à vivência das santas. No caso de Nossa Senhora do Pilar, há a própria iconografia do Pilar que está embaixo da santa. No caso de Santa Luzia, a própria referência aos olhos, na bandeja, que é tão característico das imagens.
“Isso é muito importante, porque a gente está destacando uma referência iconográfica, justamente para ressaltar as histórias, as vivências das imagens, junto com os fiéis. As imagens falam ao público e também com a história. E toda a Igreja e as representações, tanto em imagens sacras como em pinturas, dialogam justamente com isso”, afirmou.
Inspiração – O antropólogo e professor Vilson Caetano possui oito imagens de Santa Luzia, de quem é devoto, todas de madeira dos séculos XVIII e XIX. A devoção surgiu ainda na infância, na cidade de Valença, no Baixo Sul da Bahia.
“Desde criança que eu vinha para Salvador, justamente para poder fazer o tratamento na minha visão. Inicialmente, meu grau era muito forte porque eu tenho estrabismo e astigmatismo. Então, vir para a capital era uma viagem sempre muito dura, pois era de ônibus e enjoava muito, e às vezes acontecia duas vezes ao mês”, conta Caetano.
“Meu médico, Dr. Vespasiano, atendia no Hospital Português. E eu, mesmo criança, olhava para a mesa dele e deveria ter assim umas duas ou três imagens de Santa Luzia. Eu sempre dizia que quando eu crescesse, ia ter também várias Santas Luzias, como aquele médico. Então, as imagens dela sempre me chamaram a atenção e, assim que pude, comecei a colecionar”, acrescenta.
Para ele, Santa Luzia rememora essa luta na infância para não perder a visão. “E também porque a história de Santa Luzia nos ajuda a ser melhores. É uma mulher muito jovem, que é martirizada justamente porque ela acreditava num ideal, por ter se declarado cristã. E a gente pode fazer a leitura atualizada, pois muitas jovens, mulheres, são mortas porque têm outro ideal”, pontua.
Sincretismo – Caetano recorda também que na procissão, além de Santa Luzia, as pessoas saúdam Ewá, que é a íris, a chamada “menina dos olhos”. No mosaico espiritual do candomblé, Ewá emerge como uma figura misteriosa e poderosa, entrelaçando-se com a veneração a Santa Luzia. Esta última, padroeira das pessoas com deficiência visual na tradição católica, encontra sua contraparte no sincretismo com Ewá, uma orixá reverenciada pelos candomblecistas como regente da vidência, nevoeiro e neblina.
A invocação a Ewá é um cântico poético, um pedido para dissipar as nuvens que obscurecem os caminhos daqueles que a ela recorrem. Nesse rito, ela é celebrada como a “princesa-mãe do oculto”, cuja intervenção invoca os ventos e a chuva da prosperidade.
No âmago da tradição, Santa Luzia e Ewá compartilham não apenas a condição de celibato, mas também a autonomia que caracteriza mulheres guerreiras e donas de seus destinos. No candomblé, Ewá é reconhecida como irmã de Oxumarê, e seu nome, proveniente do Rio Nigeriano, evoca a força que flui pelas terras de Ogum.
A narrativa de Ewá é tecida com elementos místicos e poéticos. Conta a história de uma jovem que, ao esconder um desconhecido em uma gamela, recebe em troca o dom da vidência. Recusando-se a ser subjugada, ela desafia Xangô, senhor dos trovões, quando ele tenta seduzi-la em seu território de neblina.
A astúcia de Ewá, perceptível na zombaria diante da dança de Xangô, revela-se em seu domínio sobre a neblina. Ao conduzi-la consigo, ela revela que o território é um cemitério, desafiando o temor de Xangô pela morte e impondo-lhe respeito.
Em síntese, Ewá personifica a mulher guerreira e sábia, cuja intocabilidade não se restringe ao âmbito sexual, mas simboliza o controle sobre sua vida e destino. “Assim, mergulhar na espiritualidade entrelaçada de Ewá e Santa Luzia é explorar as nuances da fé, onde as brumas do mistério se dissipam para revelar a luz da compreensão e do autodomínio”, finaliza o antropólogo.
Foto: Otávio Santos/Secom PMS