Entenda os repasses a estados e municípios na pandemia e as suspeitas que estão no alvo da CPI

Principal argumento para expandir o escopo da CPI da Covid-19 e tirar um pouco o foco no governo Jair Bolsonaro, as suspeitas de irregularidades no uso de recursos transferidos pela União aos estados e municípios provocaram quase 80 ações da Polícia Federal de um ano para cá.

Esse número inclui fases diferentes de uma mesma operação. Muitas vezes, essas investigações foram iniciadas a partir de apurações de outro órgão federal, a CGU (Controladoria-Geral da União).

Grande parte das operações teve como alvos gestores de municípios, integrantes de secretarias de saúde e empresas contratadas pelas administrações, mas algumas também envolveram governadores.

É o caso da operação que levou ao afastamento de Wilson Witzel (PSC) do cargo no Rio de Janeiro, além do pedido da PF ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para indiciar Helder Barbalho (MDB), governador do Pará.

Ambos os governantes criticavam a condução do combate à pandemia pelo governo federal e negam as suspeitas de irregularidades que pesam contra eles.

O governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), também foi alvo de operação e, na véspera da instalação da CPI, denunciado pelo Ministério Público Federal. Ele nega irregularidades.

As transferências federais aos estados e municípios foram feitas por meio de diversas medidas do governo, entre elas a lei complementar 173 aprovada do Congresso, no ano passado, que previu auxílio da União no valor de R$ 60 bilhões.

Desse total, R$ 10 bilhões eram destinados exclusivamente às áreas da saúde e assistência social. O restante servia para mitigar os efeitos financeiros causados pela pandemia.

Houve outras transferências, como uma recomposição de valores destinados aos fundos de participação dos estados e municípios, além de recursos do Ministério da Saúde.

Ao mesmo tempo, logo no início da pandemia, no ano passado, foi reconhecida emergência de saúde pública, que facilitou, até o fim de 2020, o acesso a compras relativas à pandemia.

“Vários estados e municípios da Federação, também com o argumento da urgência no enfretamento da Covid-19, emitiram decretos estaduais que na mesma toada da lei federal, afastaram a necessidade do processo de licitação para as compras dirigidas à pandemia”, disse o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), próximo ao governo Bolsonaro, em requerimento que pediu a investigação dos recursos transferidos.

Esse requerimento é um dos documentos que serviram de base para a instalação da CPI.

“Ocorre que, em face dos bilhões de reais repassados pelo Executivo federal aos entes federados, além de verbas oriundas das próprias fontes municipais e estaduais e diante das brechas escancaradas por uma legislação criada sob regime de urgência, faltou transparência e sobrou desonestidade nos contratos firmados entre gestores públicos desonestos e a iniciativa privada”, diz o texto de Girão.

A facilidade em compras com o dinheiro do governo federal ligou alerta dos órgãos de investigação. A Polícia Federal calcula que a primeira ação envolvendo a pandemia foi a Operação Alquimia, uma investigação pontual no interior da Paraíba, na cidade de Aroeiras, com população estimada pelo IBGE em 19 mil habitantes.

Foram investigados contratos para compras de cartilhas sobre a pandemia —sendo que os materiais já estavam disponíveis gratuitamente no site do Ministério da Saúde.

Até 26 de abril deste ano, houve operações relacionadas a compras que se originaram nas unidades da PF de ao menos 23 estados, na maioria dos casos relacionadas a verbas dos municípios, para apurar desvios, contratos irregulares, fraudes em licitações e superfaturamentos.

Entenda os principais pontos que envolvem as suspeitas de irregularidades em uso de recurso por estados e municípios na pandemia.

Como foi definida a ajuda federal dada aos estados e municípios por causa da pandemia? O principal auxílio foi previsto na lei complementar 173, de maio do ano passado. Ela destinou aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios o valor de R$ 60 bilhões para aplicação em “ações de enfrentamento à Covid-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros”.

Foram R$ 37 bilhões com destinação prevista aos governos dos estados e do Distrito Federal e outros R$ 23 bilhões aos municípios.

Além disso, em abril do ano passado medida provisória previu repasse de outros R$ 16 bilhões para “compensação da variação nominal negativa dos recursos repassados pelo fundo de participação”. Há ainda recursos do Ministério da Saúde e de outras pastas.

Esse recurso é exclusivo para a área da saúde? Não. Do repasse de R$ 60 bilhões, por exemplo, apenas R$ 10 bilhões são direcionados exclusivamente à saúde e assistência social. Desse valor R$ 7 bilhões foram aos estados e ao DF e R$ 3 bilhões aos municípios.

Quais medidas facilitaram o uso de recursos por gestores? No caso do governo federal, a lei que dispõe sobre medidas para enfrentamento de saúde pública devido ao coronavírus autorizou a compra com dispensa de licitação para artigos de prevenção e de enfrentamento à Covid-19.

“Praticamente todos [os gestores] fizeram leis ou decretos permitindo e flexibilizando esse tipo de contratação”, afirma Raphael Sodré Cittadino, presidente do Ielp (Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas).

“A qualquer momento, pela lei de licitações, o gestor pode fazer contratação direta em situação emergencial ou crítica, não necessariamente declarada ou decretada. Mas todo esse arcabouço jurídico que foi criado com a pandemia do coronavírus induziu também um processo de contratações diretas no Brasil todo”, diz ele. “O gestor ficou mais confortável em fazer esse tipo de contratação.”

Para Cittadino, não é possível dizer que essa flexibilização aumentou a frequência de práticas de corrupção no país. A onda de operações pode ser, também, porque houve uma maior atenção de órgãos de controle e fiscalização –como a PF, a CGU, o Ministério Público e os Tribunais de Contas— sobre as verbas destinadas a essas finalidades.

Qual o objetivo da CPI da Covid? Além de investigar as ações e omissões do governo Jair Bolsonaro na pandemia, a CPI ficou com a finalidade de apurar “as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos” com recursos originários da União por administradores públicos federais, estaduais e municipais.

O que vinha dizendo o presidente Jair Bolsonaro? Ele cobrava que os repasses aos estados e municípios também fossem apurados, defendendo abertamente a ampliação da CPI. No último dia 10, por exemplo, criticou a proposta inicial, que não incluía os outros governantes.

“A CPI [é] para apurar omissões do presidente Jair Bolsonaro, isso que está na ementa. Toda CPI tem de ter um objeto definido. Não pode, por exemplo, por essa CPI que está lá, você investigar prefeitos e governadores, onde alguns desviaram recursos. Eu mandei recursos para lá, e eu sou responsável?”, disse.

Quais os principais casos de operações da PF por suspeita de irregularidades em uso de recursos da pandemia? Algumas operações de maior repercussão envolveram governadores. Em maio do ano passado a PF foi autorizada a fazer busca e apreensão no Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), hoje afastado do cargo. A polícia mirava um suposto esquema de desvio de recursos públicos destinados ao combate ao coronavírus no estado.

Witzel se tornou réu sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro, após o STJ receber a primeira de três denúncias da PGR contra o governador afastado. Ele é acusado de ter chefiado um esquema de desvio de recursos envolvendo contratos da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro.

Segundo a acusação, ele lavou o dinheiro ilícito por meio de contratos fictícios com o escritório de sua mulher, Helena Witzel. A partir das denúncias de irregularidades, Witzel também passou a responder ao processo de impeachment por crime de responsabilidade.

O ex-juiz negou no início de abril, ao tribunal que julga seu impeachment, que tenha cometido qualquer ato ilícito e argumentou aos desembargadores e deputados que não poderia acompanhar de perto todos os contratos firmados pela administração estadual.

“Não deixei a magistratura para ser ladrão. O que estão fazendo com a minha família e com a minha esposa é muito cruel. Decidi deixar a magistratura por ideal, para que eu pudesse ajudar o povo do Rio a ter uma mudança”, disse, chorando.

Também houve três apurações que investigaram suspeitas de desvios no Governo do Pará e tiveram, entre os investigados, o governador Helder Barbalho (MDB).

Em junho, a Para Bellum investigou suspeitas de fraudes na compras de respiradores pulmonares pelo Governo do Pará. Essa operação teve duas fases.

Meses depois, em setembro, a operação S.O.S. investigou supostas irregularidades na contratação de organizações sociais para a gestão de hospitais de campanha em municípios do estado. Os contratos foram firmados sob dispensa de licitação.

No pedido feito ao STJ, o Ministério Público Federal disse que Helder “tratava previamente com empresários e com o então chefe da Casa Civil sobre assuntos relacionados aos procedimentos licitatórios que, supostamente, seriam loteados, direcionados, fraudados, superfaturados, praticando prévio ajuste de condutas com integrantes do esquema criminoso e, possivelmente, exercendo função de liderança na organização criminosa”.

Os secretários dos Transporte e da Casa Civil foram presos na operação.

Em fevereiro, a PF pediu ao STJ para indiciar Helder, referente à primeira apuração. O governo paraense disse em à época que “demonstra, sim, uma atuação proativa de quem teve e tem como prioridade a proteção da saúde dos paraenses”.

Em nota, o Governo do Pará afirma que “como é de conhecimento público, foi o próprio governo do estado quem descobriu e denunciou o mau funcionamento dos aparelhos. Depois obrigou a empresa a devolver os recursos adiantados na compra dos respiradores. Não houve dano ao erário. O governo ainda processa a empresa por danos morais coletivos”.

Já o governador do Amazonas, Wilson Lima, foi alvo de duas fases da Operação Sangria no ano passado, que investigaram suspeita de desvio de recursos destinados ao combate à Covid-19. Segundo a investigação, houve compra de 28 respiradores, com sobrepreço, de uma empresa importadora de vinho.

Na segunda (26), na véspera da CPI, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal sob acusação de liderar uma organização que praticava peculato e dispensa indevida de licitação.

Em nota, Wilson Lima disse que “a denúncia oferecida pela PGR não apresenta provas do envolvimento dele em supostos crimes”. “Mantenho total confiança na Justiça, que haverá de, oportunamente, reconhecer que as acusações são totalmente infundadas”, disse o governador.

Governantes têm reagido às medidas de apuração? Como mostrou o Painel, um grupo de governadores quer pedir ao Conselho Nacional do Ministério Público o afastamento da subprocuradora Lindôra Araújo do Giac (Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia de Covid-19) e da investigação sobre possíveis desvios de verbas federais destinadas aos estados para combater a pandemia.

A subprocuradora encaminhou um ofício com perguntas sobre gastos com a pandemia em que acusa os governadores de mau uso do dinheiro público. No documento, Lindôra Araújo aborda suspeitas de desvios levantadas pelo presidente Jair Bolsonaro. Os questionamentos foram encaminhados após a criação da CPI da Covid.

José Marques/Folhapress