Entrevista :O estudioso da Marcha

Alessandro Procópio, professor da UFMG, fala sobre o estudo aprofundado da Marcha e do futuro das raças

O conhecimento é a chave para a evolução da sociedade. No segmento equestre não é diferente. Pensando nisso, o professor de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais, Alessandro Procópio, resolveu colocar um dos temas mais debatidos do meio, o andamento dos cavalos marchadores, na mesa de estudos. O trabalho começou em 2003, com o Mangalarga Marchador, e se ramificou para outras raças. Hoje, os estudos de Procópio são referência para quem quer discutir o assunto a sério, com base científica.
Nascido no interior de Minas Gerais, Procópio se envolveu com cavalos na fazenda do avô, que possuía tropas para trabalho com gado e colheita. “Em 1977, meu pai criava cavalos Campolina e jumentos Pêga e passei a frequentar exposições e ler revistas e tudo que se relacionasse com equinos independente de raça, o que me levou a abraçar a veterinária, em especial, os equinos. Daí ao estudo da Marcha foi um passo”, conta.
Hoje, Procópio tem um currículo que o credencia como um dos grandes especialistas da área no Brasil: doutor em Ciência Animal, na área de Melhoramento Genético, jurado da ABCCampolina, ABCPampa, ABCJPêga e fundador da AEQUITAS, empresa especializada em análise biomecânica computadorizada em equinos.
Nesta entrevista exclusiva à Horse, ele revela como desenvolveu os estudos sobre os andamentos de marchadores, a influência da morfologia e treinamento no processo, e as suas expectativas sobre o futuro dos cavalos de Marcha do Brasil.

Por que resolveu desenvolver estudos científicos sobre andamentos de marcha?
Para ligar a ciência do Melhoramento Genético Animal à criação de cavalos marchadores. Nas eternas discussões sobre marcha com jurados ou criadores sempre ficava uma interrogação devido à subjetividade e, muitas vezes, paixão. Para a evolução genética é necessário ter números frios e precisos para se trabalhar.

Qual foi seu primeiro trabalho?
Posso considerar o que gerou minha tese de doutorado quando avaliamos animais adultos montados e premiados na Nacional do Mangalarga­ Marchador em 2003.

Quais os resultados que obteve?
Foram muitos, mas penso que mostrar que a teoria de que a marcha não era o mesmo que o ‘passo acelerado’ como dito por muitos, assim como, que os diagramas das marchas batida e picada observados não eram os descritos nos padrões raciais das associações. Mas talvez o que teve a maior repercussão foi de que na alta velocidade que os animais de Marcha Batida estavam sendo conduzidos (acima de 17km/h), havia uma total descaracterização pela supressão dos tríplices apoios e surgimento de períodos de suspensão.

O que isso ajudou no desenvolvimento do andamento?
Mostrou que o caminho estava errado e fez com que algumas associações de criadores de cavalos marchadores nacionais alterassem seus regulamentos de concurso de marcha, incluindo meios para coibir a alta velocidade.

Depois do Mangalarga Marchador, por que resolveu estudar também o Mangalarga?
O Mangalarga tem sido muito receptiva ao emprego das tecnologias e métodos de análise cinemática que realizo. Em 2006/2007 recebi um convite da ABCCRM para avaliar os animais e juntamente com pesquisadores da Escola de Educação Física da UFMG realizamos um primeiro trabalho, que foi muito prazeroso. Passaram-se os anos, os cavalos e as tecnologias evoluíram, e em 2014, o criador Eduardo França me procurou para desenvolvermos um projeto visando o estudo da marcha do Mangalarga atual e editarmos um livro sobre o tema.

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Procópio: “O ‘melhor animal’ depende do objetivo de cada criador individualmente”

Até que ponto a morfologia do animal influencia no andamento marchado?
Em qualquer andamento há influência da morfologia, pois o cavalo ao se locomover precisa de balanceamento e equilíbrio associados aos princípios de conformação universais. Isso independe de raça e ou andamento. Para os andamentos marchados, as relações entre medidas de comprimento de cada segmento dos membros, assim como os ângulos entre eles, parecem interferir nos avanços permitindo que exista a dissociação que caracteriza o andamento marchado. Importante lembrar que andamento envolve ritmo e cadência, que estão associados à parte neurológica também. Nessa questão, vários estudos recentes convergem para a identificação de um gene associado à capacidade motora de dissociar e, ao meu ver, essa linha de pesquisa contribuirá muito para estudos futuros.

E a equitação? Também influência?
Muito! Tenho convicção de que os andamentos marchados são geneticamente transmitidos, mas bons treinadores e cavaleiros podem alterar o padrão de locomoção dos equinos. Por exemplo, o posicionamento do conjunto cabeça/pescoço e o apoio às embocaduras e rédeas, além da postura e pressão das pernas do cavaleiro podem interferir bastante.

Há muitas críticas sobre a qualidade de equitação dos cavaleiros de marcha. Como vê isso?
Realmente é um limitador para boa parte dos haras, pois mão de obra de alta qualidade é escassa em qualquer setor. No caso específico da equitação, há ainda a dúvida sobre as domas e estilos de equitação praticadas em raças seculares e seus empregos no cavalo marchador. Assim, como disse antes da morfologia, algumas ajudas do cavaleiro são universais, pois estão associadas a estímulos e equilíbrio. Vejo o cavalo de marcha tendo como finalidade principal a utilização em passeios que têm duração maior que a maioria das provas equestres. Precisamos encontrar uma equitação que permita o bom controle do animal de forma mais natural e confortável, respeitando também a cultura e indumentária rural brasileiras.

Qual a relação que podemos fazer entre as raças de marcha no Brasil? (Mangalarga, MM e Campolina).
São raças que possuem origens semelhantes, além de objetivos e finalidades de criações muito próximas. Seguiram em suas histórias caminhos diferentes, mas penso que buscam destinos próximos, ditados pelo mercado.

Quem evoluiu e quem retroagiu nesse quesito?
Aos alunos de Melhoramento Animal, digo sempre que o ‘melhor animal’ depende do objetivo de cada criador individualmente. Nos últimos anos, em termos de mercado e aceitação do público, o Mangalarga Marchador tem tido grande evolução. A Campolina, após um período valorizando animais muito grandes, vem fazendo um bom trabalho em busca de uma morfologia mais funcional mantendo seus diferenciais estéticos. A Mangalarga tem animais que em nossas análises recentes, são mais próximos aos descritos no padrão de biomecânica da Marcha e equitabilidade. E tem a Pampa para aqueles que gostam da pelagem com diversidade de andamentos.

Os jumentos também se enquadram nesses estudos?
Ainda não fiz pesquisa com os jumentos, mas pretendo realizá-los.

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foto2 – Procópio: “quando se associa ‘paixão’ à avaliação subjetiva fica impossível não haver polêmica”

Os cavalos brasileiros têm evoluído com relação aos andamentos marchados?
Vejo grande evolução na Marcha Trotada do Mangalarga e na Marcha Picada das outras raças. A Marcha Batida de qualidade está quase em extinção nas pistas, com alguns sinais de esperança em seu retorno. Cabe aqui uma explicação. Hoje, os animais premiados como marcha batida, quando leves no apoio às embocaduras, são excelentes animais de sela, elegantes, confortáveis e equilibrados. Há, contudo, um grande dilema, pois o diagrama, ou sequência de apoios que eles apresentam, não corresponde ao preconizado nos padrões raciais, sendo necessárias discussões profundas e urgentes sobre o tema.

Como o Brasil está com relação aos marchadores de outras partes do mundo?
Temos um cavalo de marcha diferenciado pela naturalidade de seu andamento e penso que devemos preservar e/ou recuperar a rusticidade e adaptação ao nosso clima tropical.

Podemos dizer que o Brasil é referência mundial na questão de cavalos de marcha?
Sim. Pesquisadores de todo o mundo têm buscado subsídios para os estudos de genética da marcha em nossos animais. Criadores de todos os lugares querem conhecer e montar os cavalos­ brasileiros.

Como vê as polêmicas em torno dos julgamentos, presentes praticamente em todas as raças?
Quando se associa ‘paixão’ à avaliação subjetiva fica impossível não haver polêmica. O andamento apresenta detalhes que acontecem em milésimos de segundo, sendo impossível que todos enxerguem da mesma forma.

Os juízes são bem preparados?
A grande maioria é muito competente e as associações têm trabalhado nessa preparação.

Que tipo de recursos poderia ser usado para padronizar os julgamentos?
As análises cinemáticas são grandes ferramentas de treinamento de jurados, pela visualização de imagens em câmera lenta captadas por câmeras de alta velocidade em programas computacionais de biomecânica.

O que é fundamental para se avaliar o andamento?
Qualquer avaliação parte do conhecimento dos itens descritos no regulamento de cada Raça e a graduação de importância de cada um deles. Concentração e sangue frio são outros dois atributos de um bom jurado. No caso dos equinos de marcha, montá-los é um subsídio muito importante.

Vemos hoje que os tipos de marcha estão cada vez mais se subdividindo, com picada, batida, centro, trotada. A tendência é cada vez mais as subdivisões?
Temos que valorizar nossos antecessores que criaram esses termos e redigiram, a partir da observação pessoal e sem equipamentos, o padrão de movimento dos animais para cada uma delas. Precisamos atualizar as redações, pois algumas estão defasadas e não vejo problemas em criar novas denominações, embora não considere isso uma solução.

Acredita que poderemos, no futuro, ter outros tipos de marcha?
A essência do andamento marchado é possuir dissociação e manter o animal sempre em contato com o solo. Poderemos sim ter variações, pois as diferenças são sutis entre o tempo de apoios de cada membro, permitindo diferentes coordenações e ritmos variados. Por enquanto, considero mais importante fixar geneticamente e conceitualmente as que já temos.

Como vê a questão dos recursos artificiais para melhorar o andamento?
O auxílio para melhoria do desempenho animal pode ser bem-vindo. Para o melhoramento genético é fundamental quantificarmos o quanto se deve à genética e o quanto se relaciona a efeitos não genéticos. Infelizmente há excesso de intervenções, muitas delas sem eficácia comprovada e outras que prejudicam o bem-estar e diminuem a vida útil do animal.

Até que ponto isso influencia o mercado?
Animais de melhor desempenho aquecem o mercado. Produtos originais e confiáveis têm vida mais longa.

Qual a sua perspectiva com relação ao futuro dos cavalos de marcha do Brasil?
Confio no crescimento e disseminação por todas as regiões. No Brasil, a grande maioria dos animais é para passeio ou lida com gado, que são duas boas aptidões das raças marchadoras. O mercado tem acenado para crescimento na procura por equídeos confortáveis, dóceis e seguros.

Mais alguma coisa que queria comentar?
A Equideocultura precisa se modernizar, pois é uma das forças do agronegócio Brasileiro e ramo da Zootecnia, considerado como a ‘Arte e Ciência de criar animais’. O criador é como um artista que se inspira em seus animais e com seu ‘feeling’ projeta os objetivos de sua criação definindo a linha de ação. A ciência e tecnologia empregadas por profissionais capacitados são ferramentas objetivas que encurtam caminhos com maior assertividade. Acredito que as associações e ou criatórios que conseguirem equalizar e harmonizar ambos, estarão preparados para despontar nesse setor extremamente competitivo e muito promissor.

*Por Alessandro Procópio, Doutor em Ciência Animal, na área de Melhoramento Genético, jurado da ABCCampolina, ABCPampa, ABCJPêga e fundador da AEQUITAS

Fonte:  (Entrevista publicada na edição 81 da Revista Horse)Revista Horse Fotos:Divulgação/Revista Horse