ENTREVISTA – Presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade, Silvia Cerqueira

A grande repercussão em torno do caso do afro-americano George Floyd, morto após ser estrangulado por um policial que se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem, trouxe aos holofotes a questão do racismo. O assassinato de Floyd gerou protestos em todo o mundo. No Brasil, casos semelhantes ao do norte-americano, acontecem cotidianamente, sobretudo na periferia das grandes metrópoles do país. Em entrevista ao Bahia Sem Fronteiras, a advogada e atual presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade, Silvia Cerqueira, falou o racismo, inclusive dentro da sua própria trajetória profissional,  e suas inúmeras facetas dentro da sociedade.

“Além da invisibilidade enfrentada em salas de audiência, Tribunais e várias estruturas inclusive políticas, é como se você estivesse em um lugar fora do seu pertencimento”, disse a jurista que atualmente é também é senadora suplente do Senador Ângelo Coronel.  

1) Atualmente, a senhora é um dos grandes nomes da advocacia baiana. Nos fale um pouco sobre sua trajetória.

Em 1978 quando me graduei como Bacharela em Ciências Jurídicas pela UCSAL (Universidade Católica do Salvador), a Advocacia era essencialmente machista, elitista e branca. Nesse contexto ser mulher advogada negra, fugia a todos os requisitos exigidos para exercê-la, enquanto carreira considerada nobre ao lado da Medicina e da Engenharia.

Nessa perspectiva, gostaria um pouco de particularizar a minha experiência: eu não “me enquadrava” segundo os padrões exigidos principalmente segundo os componentes referentes ao sexo e a cor/preta, exigidos de forma determinante a época; contudo, advogar era acima de tudo uma opção e tornou-se um exercício de superação diário, que tirava de letra; até por vir acumulando razoável legado, na afirmação da minha identidade quotidianamente, em razão de ser egressa de dois Colégios tradicionalmente de elite, Colégio Nossa Senhora Das Mercês e o Colégio Dois de Julho, onde eu sempre fiz parte da exceção, considerando principalmente o quesito cor.

Compartilhava sempre desse apartheid, no máximo com mais uma ou duas colegas em sala de aula no curso colegial, cujo cenário experienciado era idêntico na Universidade, o que sempre me obrigou a ter notas destacadas nas disciplinas semestrais, e nesse particular, confesso com muita alegria que só eu ganhei, porque isso me fez continuar estudando, até hoje, após 42 (QUARENTA E DOIS) anos de profissão, atualmente curso Doutorado em Direito Constitucional.

Na OAB-BA

2) De que forma o fato de você ser uma Mulher Negra pesou/atrapalhou sua vida profissional?

Essa breve ponderação acima, objetiva dizer que no geral e particular a expressão advocacia embora seja feminina, ela sempre permeou o universo eminentemente masculino, que perpassava desde o atendimento nos balcões quando das diligências Cartorárias em que os advogados (homens) e consequentemente mais conhecidos eram priorizados, em detrimento das advogadas até o tratamento dispensado pelos Magistrados nas mesas de audiências, onde alguns se davam ao luxo de forma deliberada em invisibilizar as advogadas, situação que era potencializada nos Tribunais Superiores.

A esses registros se somavam os estágios gratuitos, o pagamento diferenciado entre advogados e advogadas no mesmo escritório, embora com idêntica produtividade; a falta de credibilidade na advocacia feminina, agregando a condição de ser  negra, por parte do jurisdicionado, fruto do preconceito existente contra a mulher acrescido da cor da pele, a ponto de ser questionada ao receber os clientes que diziam: “gostaria de falar com o advogado”, e por ser negra as vezes “Você pode chamar o Doutor”  considerando que determinadas profissões, dentre elas a advocacia, deveria ser de domínio exclusivo do universo masculino, branco e elitista;

Lembro-me de um episódio surreal com um colega da advocacia. Saia de um Cartório dentro do Fórum Rui Barbosa e cruzei com esse colega que ao ver-me veio abraçar-me e logo em seguida de forma espantosa usou a seguinte expressão “ poxa Silvia como você cheira bem!!!!” cuja, resposta veio de pronto “ E você também”.

Sai dali e pensei em escrever um artigo, acerca das mazelas da escravidão. Mas embora ele se considerasse muito importante, conclui que não merecia sequer que eu me detivesse naquele triste episódio para em forma de artigo fazer uma denúncia de racismo “velado”.

Assim, se quisesse passaria toda a entrevista relatando fatos, e condutas racistas que experimentei ao longo da vida.

Além da invisibilidade enfrentada em salas de audiência, Tribunais e várias estruturas inclusive políticas, é como se você estivesse em um lugar fora do seu pertencimento.

Acontece que eu sempre aprendi com o meu velho pai que o meu lugar era todos aqueles que eu quisesse estar, ficar enfim eu resolvia e é assim até hoje.

3) De que forma a comissão da Igualdade vem trabalhando contra o racismo?

Essa Comissão foi criada no dia 03/09/2007, na sede do Conselho Federal em Brasília, 1.971ª Sessão – 77ª Reunião, na qual fui  empossada a primeira Presidente desta comissão, bem como a primeira Conselheira Negra do Estado da Bahia e do Conselho Federal da OAB, fui reconduzida na gestão seguinte e atualmente  presido a Comissão Nacional de Promoção da igualdade do Conselho Federal da OAB.

Em recente pesquisa por mim solicitada obtive a informação de que atualmente somos um contingente de 36.776 advogados negras (os), equivalente a 3,07%, cujo marco estatístico se deu a partir da unificação do exame de ordem, em 2010, no universo de 1.198.365 inscritos, sendo 596, mil mulheres, correspondente a 49,7% dos inscritos.

A CNPI tem a competência de assessorar o Conselho Federal e a Diretoria no encaminhamento das matérias de suas competências; também elaborar trabalhos escritos, pareceres, promover pesquisas e eventos que estimulem o estudo, a discussão e a defesa de temas afetos às suas áreas de atuação;

Também, mediante autorização da Diretoria do Conselho Federal, tem a competência de cooperar e promover intercâmbio com organizações de objetivos iguais ou assemelhados; orientar os trabalhos das comissões congêneres criadas nos Conselhos Seccionais e Subseções, além de servir de elo entre a sociedade civil e a estrutura OAB, nas demandas e temas que dizem respeito a Democracia, a Cidadania e a defesa incansável dos Direitos Humanos.

Hoje experimentamos avanços significativos embora na minha avaliação sempre acompanhado de grande defasagem; porém, é inegável, que enquanto partícipes de uma sociedade moderna e democrática o segmento negro, não só na advocacia, vem dando continuidade a luta histórica de combate ao racismo,  num processo de articulação efetiva para corrigir as desigualdades contra os afro-brasileiros, perpetradas em todas as áreas de atuação fomentando o combate ao preconceito e a toda forma de discriminação em razão de raça, cor, sexo, gênero, etnia etc, de maneira exitosa, cuja caminhada na atualidade coincide consequentemente com a luta da advocacia negra e nesse particular contamos com uma valiosa contribuição das ações afirmativas que de forma concreta vêm promovendo a igualdade de tratamento e buscando minimamente garantir o acesso dos afrodescendentes ás diversas instâncias de poder.

No Senado Federal

4)            Como você vê a questão do Racismo estrutural?

Atualmente, a advocacia negra é uma realidade positiva, irreversível: seja do ponto de vista personalíssimo, atendendo a um padrão de excelência, com bancas exclusivamente de profissionais negros; seja do ponto de vista institucional em que a participação das advogadas (os) negras (os) na estrutura OAB se constitui numa pauta diuturna da CNPI e que tende a avançar dando continuidade a uma luta histórica do movimento negro no nicho da advocacia brasileira.

A garantia de acesso e efetiva participação institucional se constitui em efetiva desconstrução do racismo estrutural que permeia o estado brasileiro desde a sua construção através das 03 raças fundantes, cujo negro escravizado se constituiu em pilar fundamental histórico, cultural, força de trabalho etc, sem contudo, ter sido assimilado como parte integrante e legítima do povo brasileiro.

5)            A morte de George Floyd desencadeou uma série de protestos nos EUA e Europa? Porque o mesmo não ocorreu aqui no Brasil?

Nós brasileiros, embora americanos estamos em pontos extremos com relação aos Norte Americanos; e, em razão disso com uma colonização, histórias, povos e civilizações com pontos de convergências, mas, também com muitas diferenças; o que reflete profundamente nas nossas ações, reações e manifestações. Apesar de termos culturas firmadas na democracia, as instituições das duas américas possuem identidades profundamente diferentes o que reflete sem sobra de dúvidas na cultura e comportamento do povo norte americano e do povo brasileiro de forma distinta.

Desse modo, a dor causada pela morte de qualquer ser humano é irreparável; sobretudo quando a causa é a cor da sua pele. Assim, a morte de de George Floyd e a morte de João Pedro, no RJ ambos por policiais, causaram a mesma comoção, dor e reação; o que difere é a certeza garantista que os Estados por intermédio das suas instituições asseguram lá e aqui, quando ocorrem as violações e as consequentes reivindicações dos direitos constitucionalmente garantidos.

A solidez do sistema constitucional Americano está distante do nosso; não por força da sofisticação legal, pois possuímos leis quase perfeitas; mas, pela vivência conflituosa dos poderes, distanciando-se da convivência pacifica, harmônica e acima de tudo respeitosa, revelando um desequilíbrio assustador.

E, essas fragilidades, repercutem nas ruas, nos guetos nas favelas etc, cuja população é majoritariamente compostas por negros e negras, que não detém as garantias minimamente necessárias para estarem seguros nas ruas.

6) Como a senhora enxerga a problemática violência policial, onde a maioria das vítimas são negros e moradores das zonas periféricas?

A deformação na construção do Estado brasileiro repercute em duas perspectivas: a primeira decorre da força da escravidão que relegou os negros para as periferias lhes negando condições mínimas de sobrevivência digna, empurrando-os para a pobreza total; segundo reflete-se no formato das instituições concebidas de forma discriminatória, racista e preconceituosa.

Assim, quando o Estado brasileiro está representando a área de segurança ele reproduz em suas abordagens os estigmas da sua própria concepção, ou seja, em determinadas regiões só existem “bandidos” e “todo negro é marginal”, reflexo da herança maldita da escravização dos negros, essa é a equivocada e desastrosa tônica. Mata-se primeiro para depois averiguar-se os antecedentes. É dentro dessa concepção que se encaixa o famigerado “auto de resistência”.

Por fim, a OAB obedece o sistema federativo, onde cada Estado tem a sua seccional, e as violações de direitos sofridas pela sociedade poderão ser encaminhadas para num primeiro momento para as comissões de igualdade do estado onde houver, ou diretamente para a CNPI, onde serão tomadas providências no sentido de denunciar e uma vez o Colegiado entendendo, após avaliação técnico-jurídico que cabe ingressar com uma ação adequada ou manifestações e recomendações de natureza política, legislativa, executiva etc, tais medidas serão tomadas nos termos do Artigo 133 que confere ao advogado indispensabilidade na administração da justiça, considerando que é inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

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