Lula revoga quase 2 decretos por dia, de armas a privatizações, e mira Bolsonaro; veja o que mudou

Desde que assumiu, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogou quase dois decretos por dia passando por restrição ao porte de armas, cancelamento de privatizações de estatais e afrouxamento no Marco Legal do Saneamento, mostra levantamento obtido pelo Estadão.

Ao menos 231 decretos de gestões anteriores já foram anulados em atos assinados pelo petista e quase todos os seus auxiliares, especialmente os ministros Fernando Haddad (Fazenda), Simone Tebet (Planejamento) e Esther Dweck (Gestão). Decisões tomadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foram as mais revertidas.

Do total, 155 desses decretos foram revogados integralmente e outros 76, de forma parcial até 4 de maio, segundo a Casa Civil. Parte dessas medidas têm caráter administrativo por modificar composições internas de órgãos e conselhos estatais, alterar o escopo de programas – como o de desestatização – ou dar outro rumo a políticas específicas da indústria, agricultura e acesso a armas, por exemplo (veja lista das principais abaixo).

Compromisso de campanha do petista, o revogaço também visa marcar a posição atual do governo sobre temas considerados ideológicos. Estão nessa lista, por exemplo, os decretos que anularam atos de Bolsonaro relativos a incentivos fiscais para produção cultural, regras para inclusão escolar de alunos com deficiência e ações contra o desmatamento da Amazônia.

“Só falta o governo Lula revogar a lei da gravidade pois a mentalidade tacanha do PT é de que mudar é sinônimo de melhorar, quando melhorar é sinônimo de aperfeiçoar e para aperfeiçoar muitas vezes conservar o que já existe e foi um grande avanço já é um enorme passo à frente”, critica o ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira. Para ele, o revogaço não é do governo Bolsonaro mas “do presente e do Brasil”. “Lula, ao invés de usar a caneta e escrever o futuro, prefere usar a borracha e apagar o passado. Resultado: seu legado vai ser uma enorme folha em branco”.

Após o simbolismo que marcou os primeiros atos da posse, quando Lula anulou decretos que facilitaram a compra e o porte de armas na gestão Bolsonaro, a Casa Civil de Lula seguiu a determinação presidencial de “reconstruir políticas” em diversas áreas.

“Todos esses atos têm uma sinalização de ruptura. São simbólicos porque mostram que a atual gestão federal tem outras concepções políticas”, diz o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV-SP, que esperava essa concentração de decretos revogados nos primeiros meses do governo.

Queda de braço
Ainda sem uma base aliada forte no Congresso, o governo Lula não conseguiu fazer valer todas as mudanças apresentadas via decreto no caso do Marco Legal do Saneamento. Na terça, 3, a Câmara dos Deputados aprovou, por 295 votos a favor e 136 contra, a derrubada de trechos de dois decretos do presidente que alteraram a regulamentação das políticas de saneamento básico no Brasil. Criticada por especialistas por afrouxar as regras para a continuidade da prestação dos serviços por estatais que não conseguiram comprovar capacidade para cumprir as metas de universalização de água e esgoto, a derrubada de trechos dos decretos ainda precisa passar pelo crivo dos senadores.

De Londres, onde acompanhou a coroação do Rei Charles III, Lula minimizou a derrota. “São 513 deputados e um articulador e podemos errar, mas vamos acertar”, disse, no sábado, 6.

Parlamentares bolsonaristas ainda tentam, por meio de uma série de projetos de decreto legislativo, derrubar as mudanças feitas por Lula na política de armas. Ao menos 34 deputados e dois senadores já apresentaram propostas para, assim como no caso do Marco Legal do Saneamento, sustar as mudanças em vigor e retomar a política anterior. Nenhum das sugestões, no entanto, avançou até aqui.

Privatizações
Seguindo a promessa feita de “não vender mais nenhuma empresa estatal”, Lula também alterou, via decreto, o Programa Nacional de Desestatização. No dia 6 de abril, ato assinado pelo presidente e pelo ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, retirou sete empresas da lista passível de venda. Entre elas, os Correios e a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).

No dia 5, o ministro dos Portos e Aeroportos, Marcio França, disse ainda que a privatização do Porto de Santos e de outras autoridades portuárias pelo País também estão fora de cogitação. Segundo França, as tentativas do governo anterior nesse sentido foram um “devaneio”.

Outros decretos opõem a política atual da praticada pela gestão Bolsonaro mesmo que os atos não revoguem decisão direta do ex-presidente. É caso, por exemplo, da homologação de seis terras indígenas, na área Kariri-Xocó, no final de abril, em cerimônia que teve a participação do presidente Lula e da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Fazia cinco anos que nenhuma terra indígena era demarcada pela União.

Prêmio Luiz Gama
Outro tema que tem aquecido a disputa entre bolsonaristas e lulistas é a instituição, via decreto, do Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos. Publicado em 4 de abril, o ato revogou a Ordem do Mérito Princesa Isabel, criada em dezembro do ano passado e usada para premiar nomes do então governo, como o próprio presidente Bolsonaro e os ministros Damares Alves (Direitos Humanos), Marcelo Queiroga (Saúde) e Anderson Torres (Justiça), que estava preso por suspeita de participação dos atos golpistas do dia 8 de janeiro – ele teve liberdade concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexande de Moraes na quinta-feira, 11, e terá de usar tornozeleira.

Segundo decisão do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, o prêmio será concedido a cada dois anos, em anos pares. A ideia é reconhecer pessoas físicas e jurídicas de direito privado (associações, fundações, organizações religiosas, empresas individuais de responsabilidade limitada) que prestarem serviços notáveis. Luiz Gonzaga Pinto da Gama é considerado um dos principais abolicionistas do Brasil. Nascido em Salvador, em 1830, foi advogado, poeta e jornalista, e lutou pela libertação de mais de 500 negros escravizados.

Confira alguns dos decretos revogados:
Política de armas
Assinado no dia 1º de janeiro, ainda durante a posse, o decreto 11.366 suspende os registros para a aquisição e posse de armas no Brasil. Sua publicação revogou outros seis decretos de Bolsonaro de forma integral ou parcial

Inclusão escolar de pessoas com deficiência
Também no dia da posse, o presidente Lula assinou o decreto 11.370, que revogou o ato 10.502, de setembro de 2020, para voltar a incentivar a inclusão de alunos com deficiência na escola regular.

Garimpo ilegal
A revogação do decreto 10.966, de 11 de fevereiro de 2022, colocou fim ao programa de apoio à mineração artesanal, considerado incentivo para o garimpo ilegal no Brasil. O ato que revogou a política de Bolsonaro se deu pelo decreto 11.369, de 1º de janeiro de 2023.

Distribuição de absorventes
Decreto 11.432/23, de 8 de março de 2023, determinou novas regras para o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, revogando decreto 10.989, de março de 2022. Governo Lula especificou e ampliou o público-alvo

Prêmio Luiz Gama
A assinatura do decreto 11.463, em 31 de março de 2023, revogou a Ordem do Mérito Princesa Isabel, criada em dezembro do ano passado, e instituiu o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos.

Programa de Desestatização
Decreto 11.478, de 6 de abril de 2023, reduziu o conjunto de empresas estatais listadas para serem privatizadas pela União, revogando, no mesmo ato, 13 decretos editados pelo governo Bolsonaro

Marco Legal do Saneamento
O governo Lula, por meio da publicação do decreto 11.476, de 5 de abril de 2023, tentou alterar normas aprovadas durante o debate do Marco Legal do Saneamento Básico. Ao ato assinado pelo petista, no entanto, foi em parte derrubado pela Câmara dos Deputados.

Adriana Ferraz, Davi Medeiros e Natália Santos/Estadão Conteúdo