No Brasil, um quarto dos mortos por coronavírus está fora dos grupos de risco

No Brasil, um quarto dos mortos por Covid-19 desde o primeiro registro da doença no país não faz parte dos chamados grupos de risco — ou seja, 25% das vítimas fatais são pessoas com menos de 60 anos e sem comorbidades que agravam os sintomas. Esse número disparou nos últimos 15 dias, segundo levantamento do jornal GLOBO feito com base em dados no Ministério da Saúde.

Até o dia 27 de março, apenas 11% dos óbitos foram vistos entre pessoas com menos de 60 anos, e somente 15% das vítimas fatais não apresentavam comorbidades. Agora, porém, esses índices aumentaram — 25% das mortes ocorrem entre pessoas com menos de 60 anos, e 26% dos óbitos foram em pacientes sem registro de doenças preexistentes, como diabetes, cardiopatias e pneumopatias.

O país, então, segue um padrão diferente de nações como a Espanha, a segunda com maior número de óbitos — cerca de 166 mil, atrás apenas dos EUA. No Brasil, a proporção de pessoas abaixo dos 60 anos de idade que morreram pela Covid-19 é mais de cinco vezes maior que a registrada na Espanha (4,6%). Segundo o boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado ontem, o Brasil tem até agora 22.169 pessoas diagnosticadas com o novo coronavírus, e 1.223 óbitos. O balanço de sábado contabilizava 20.727 contaminações e 1.124 mortes.

Com base na premissa de que a doença é mais perigosa para idosos e pessoas com comorbidades, empresários e políticos, entre eles o presidente Jair Bolsonaro, vêm defendendo a estratégia conhecida como isolamento vertical, na qual apenas as pessoas consideradas dentro de um grupo de risco seriam submetidas ao isolamento social. O Ministério da Saúde, no entanto, vem defendendo que ainda não é hora de relaxar as medidas de isolamento para todos os que podem ficar em casa.

Secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Jurandi Frutuoso diz acreditar que o aumento dos óbitos entre pessoas fora dos grupos de risco no Brasil mostra que isolamento vertical não faria sentido:

— Se você tem um número cada vez maior de jovens e pessoas saudáveis morrendo da doença, não faz sentido falar em isolar grupo de risco. Não seria eficaz.

Uma das explicações para a mudança de perfil dos mortos no Brasil está no fator socioeconômico, segundo especialistas. Professor do Departamento de Epidemiologia da USP, Eliseu Alves Waldman afirma que o coronavírus está chegando na periferia das grandes cidades, onde a população é “socialmente mais vulnerável”. Antes, tinha atingido apenas setores da elite, com acesso a um melhor atendimento de saúde.

— O coronavírus pode se expandir muito nessa região (nas periferias), porque as condições de moradia são mais frágeis. As casas são pequenas, e há várias dividindo o mesmo dormitório — afirma.

O número de mortos fora do grupo de risco poderia, portanto, continuar a crescer — o que não significa que idosos e pessoas com comorbidades corram menor risco.

Professora visitante da Fiocruz, a italiana Marta Giovanetti afirma que o Brasil “aprendeu lições” com os países europeus, e não deve expor a população, principalmente em comunidades.

— Algumas pessoas podem ter pensado que valeria a pena expor a população que não pertence à zona de risco e levá-las ao trabalho, mas sabemos que elas também podem ser vulneráveis. Todos estão sujeitos ao contágio, e pode haver uma procura em massa do SUS, o que vai gerar em seu colapso.

Para Hélio Bacha, coordenador técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia, primeiro “a doença atingiu muitos idosos de melhor poder aquisitivo, que têm uma expectativa de vida maior, depois, eles se isolaram e aumentaram os casos entre a população mais jovem e de menor poder aquisitivo, que precisa continuar a trabalhar e, portanto, acaba tendo uma exposição maior ao coronavírus”.

Sobreposição viral
Outro fator que pode ter aumentado a gravidade da doença entre os mais jovens é a combinação do novo coronavírus com outros patógenos. Segundo o secretário nacional de Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, os brasileiros estão convivendo com uma sobreposição entre os casos de Covid-19 e de influenza A e B, outras doenças virais.

— Essa é uma hipótese que ainda precisa ser testada, mas acreditamos que é plausível — avalia. — Podemos estar observando uma cocirculação de outros vírus respiratórios ao mesmo tempo em que enfrentamos a Covid-19. Isso pode fazer com que mais jovens e adultos jovens contraiam a Covid-19 no Brasil do que o observado em países do Hemisfério Norte.

Como pouco se sabe até agora sobre as mutações que o novo coronavírus vem sofrendo, também existe a possibilidade de os brasileiros estarem enfrentando um patógeno mais agressivo para os grupos fora de risco do que o visto em outros países, afirma o infectologista Alexandre Vargas Schwarzbold, professor da Universidade Federal de Santa Maria.

— Na China, a doença acometeu mais a população mais velha, e os jovens foram estigmatizados por isso. Os idosos também foram as principais vítimas na Europa. É provável que o coronavírus tenha sofrido uma mutação que aumentou sua agressividade, e isso foi sensível para a população do continente europeu, cuja média de idade em alguns países é avançada — explica. — Nos EUA, o maior fator que estamos vendo é o social. Cerca de 70% dos óbitos são entre negros, que predominam entre os pobres.

O Globo

Foto: OZAN KOSE/AFP