Racismo no futebol brasileiro segue com punição branda desde caso Grafite

Grafite, 42, atacante da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2010, campeão mundial com o São Paulo em 2005 e hoje comentarista da TV Globo, tem um arrependimento que já dura 16 anos.
 

“Eu me arrependo por não ter levado adiante para ver as consequências. Provavelmente não daria em nada. Mas eu deveria ter levado adiante”, afirma.
 

Ele se refere ao episódio com o argentino Leandro Desábato em partida entre São Paulo e Quilmes (ARG), no Morumbi, pela Libertadores de 2005. O atacante lembra-se de ter sido chamado de “negro de merda”. O delegado Osvaldo Nico Gonçalves entrou em campo e deu voz de prisão ao defensor por racismo. Na lembrança dele, o brasileiro havia sido chamado de “macaco”.
 

Seis meses depois, Grafite precisava decidir se levaria o caso criminal adiante ou não. Após passar dois dias preso, o argentino pagou fiança de R$ 10 mil e voltou à Argentina. O atacante do São Paulo desistiu.
 

Mesmo depois de tanto tempo, é um episódio raro no futebol brasileiro. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a dificuldade de punições criminais acontece por um misto de descrença das vítimas de que haverá consequências sérias, falta de informação e a legislação do país.
 

“São muitos poucos casos que foram à Justiça. A gente precisa ter o entendimento que a maioria dos casos de racismo no futebol são caracterizados como injúria racial. O racismo é um crime inafiançável e imprescritível. A injúria racial oferece a possibilidade de converter a pena em trabalho social e pagamento de cestas básicas”, diz Marcelo Carvalho, fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
 

Jogadores alvos de ofensas acreditam que basta apenas registrar Boletim de Ocorrência. Ignoram que o documento deve servir como base para um inquérito posterior e não levam a reclamação adiante. Carvalho afirma existirem registros de jogadores que não conseguiram prestar queixa pela alegação do delegado local de que o atleta seria de outra cidade.
 

“O delegado que fez isso agiu de forma incorreta. Ele está lá para exercer uma função pública e servir à população”, diz Robson de Oliveira, presidente da comissão de Igualdade Racial da OAB de São Paulo.
 

Ele concorda com a avaliação de que há problemas na legislação e esta desestimula jogadores a buscar justiça.
 

“O atleta muitas vezes não quer registrar porque sofre dupla sanção, pela ofensa que recebeu e como é visto no meio [do futebol]. Quando alguém fala do cabelo, chama de macaco, quer ofender. Mas isso é classificado como injúria racial porque é contra o indivíduo, não é considerado racismo, um crime que afeta a dignidade humana. As pessoas que praticam [a injúria] sabem disso. Percebem que a aplicação da lei neste caso é algo pouco substancial. Pagam umas cestas básicas e acabou”, completa.
 

Pelo Código Penal, a injúria racial pode acarretar detenção de um a três meses e multa. O racismo tem pena máxima de três anos de prisão.
 

O último caso que se tornou público no futebol nacional foi o de Celsinho, do Londrina. Em partida da Série B, no final do mês passado, ele disse ter sido chamado de “macaco” por um dirigente do Brusque.
 

Na súmula, o árbitro Fabio Augusto Santos Sá Júnior relatou que o jogador foi ofendido com a frase: “vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha”.
 

Celsinho contou ter sido a terceira vez que passou por fato semelhante e prometeu ir até o fim na área criminal.
 

“No âmbito do STJD [Superior Tribunal de Justiça Desportiva], todos os casos que chegam ao nosso conhecimento e que possuam o mínimo de verossimilhança e prova são denunciados, e os infratores, punidos. Não há impunidade”, afirma o procurador-geral da máxima esfera da justiça desportiva do país, Ronaldo Botelho Piacente.
 

Segundo levantamento do próprio tribunal, 25 casos de injúria racial ou de gênero foram julgados desde 2014. Destes, 23 receberam punições variadas. No caso de multa, foram de R$ 100 a R$ 60 mil. Atletas receberam suspensões por cinco jogos e dirigentes pegaram ganchos de 15 a 100 dias.
 

O Esportivo-RS perdeu três pontos no Campeonato Gaúcho de 2014. No mesmo ano, mas pela Copa do Brasil, o Grêmio também recebeu essa punição após a partida de ida contra o Santos, em Porto Alegre. Uma torcedora chamou o goleiro Aranha de “macaco”. Isso acarretou na eliminação da equipe do torneio.
 

“O Código [Brasileiro de Justiça Desportiva] já prevê penalidades em caso de injúria racial. Mas todo debate em relação ao tema é salutar. O mundo vive em constantes mudanças e, com isso, regras, normas, leis devem se adequar a essas novas realidades”, analisa Piacente.
 

De acordo com dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, de 2014 a 2020 aconteceram 49 casos de racismo levados ao STJD e aos tribunais estaduais. Trinta tiveram alguma punição e 19 acabaram em absolvição. Foram aplicadas também a torcedores proibições de entrar em estádios por até dois anos.
 

“O movimento negro tem trabalhado para mudar isso e mostrar que injúria racial e racismo são a mesma coisa. Isso pode tornar as punições mais severas”, diz Robson de Oliveira.
 

O caso de racismo mais impactante da história do futebol nacional aconteceu com Grafite. Foi um fato que começou a alterar a percepção sobre o tema no esporte do país.
 

Desábato foi preso em um jogo transmitido ao vivo pela Globo. Causou discussões acaloradas por dias, com vários comentaristas a considerar que a prisão havia sido exagerada. Houve o agravante da maneira como o crime foi enquadrado.
 

“Eu não o prendi por injúria racial. Ele foi preso por racismo”, afirma o delegado Nico.
 

Não é um assunto sobre o qual Grafite goste de falar. O comentarista ainda hoje flagra olhares atravessados quando vai a algum lugar caro, apenas por ser negro. Isso muda quando percebem ser ele é um ex-jogador de futebol e funcionário da emissora mais popular do país.
 

“Hoje o racismo está mais comum. Os racistas estão saindo do armário por tudo o que vivemos politicamente, estruturalmente. Não é um negócio pontual. Imagina meu caso hoje em dia, com as redes sociais, iria reverberar muito mais. Repercutiria igual ao do George Floyd”, acredita ele, citando o caso do americano morto pela polícia nos Estados Unidos. O crime fez explodir o movimento Black Lives Matter.
 

Grafite considera punição por injúria racial, no esporte e na Justiça comum, como algo “muito brando”. Ao relembrar seu episódio com Desábato, constata que a denúncia e a prisão aconteceram quase por acaso.
 

“O Nico passou por mim e disse que ia prender o argentino. Eu já estava indo embora. Se fosse cinco minutos depois, já teria saído do Morumbi. Muita gente me apoiou, muita gente me criticou. Eu tinha de prestar depoimento, e o Desábato não iria voltar no Brasil. Eu estava sozinho e precisava seguir minha vida. Falavam mais do racismo do que das coisas que eu fazia [em campo], dos gols…”, completa Grafite, lembrando que se hoje considera “fraco” o engajamento racial, em 2005 não existia.
 

Procurado, Desábato não atendeu às ligações da reportagem.

Folhapress