Salvador 474 anos: Projetos e iniciativas municipais mantêm saberes e prática da capoeira em evidência

Assim como o carnaval, o samba e o futebol, a capoeira é um elemento representativo da identidade cultural do país. Ao longo dos últimos anos, essa expressão cultural afrobrasileira passou a contar com uma série de estímulos do município, para o incentivo à prática e à transmissão de saberes da arte-luta, através de editais, prêmios, projetos em comunidades carentes e escolas públicas. E mais novidades vêm por aí.

Até o final de abril, durante o período de comemorações dos 474 anos de Salvador, a Prefeitura dará início à construção de uma arena, na Praça Marechal Deodoro (também conhecida como Praça das Mãozinhas), no Comércio, que acolherá praticantes e admiradores da capoeira, vindos de todos os cantos mundo. Além de ser palco de rodas e apresentações, o espaço terá um monumento composto por quatro arcos de 12 metros de altura em aço, representando quatro berimbaus que se unirão ao topo, dando o formato de uma grande cabaça e uma espécie de templo.

No local ainda haverá dez esculturas, em homenagem a mestres capoeiristas , tocando os principais instrumentos musicais da roda da capoeira, além de mais duas estátuas, simbolizando a luta, na base central. Todas elas serão feitas em tamanho natural e confeccionadas em bronze. A nova arena será uma área destinada à realização de rodas de capoeira na capital baiana, como as tradicionais que já existem no Terreiro de Jesus, praças da Sé (Pelourinho) e Cairu (Comércio, além do Mercado de São Miguel (Baixa dos Sapateiros), tornando-se ponto de difusão da expressão cultural.

Além de ter as ruas como pano de fundo, a estratégia de propagar a capoeira na capital baiana tem alcançado crianças, jovens e adultos, em grandes espaços multiuso. O pequeno Lorenzo, de apenas 3 anos, teve seu primeiro contato com a prática, dentro do Centro de Artes e Esporte Unificado (CEU) de Valéria. O local tem quatro turmas de capoeira, que somam 40 alunos no total.

As atividades são conduzidas, às terças e quintas, pelo mestre Cabeção. “A região de Valéria é considerada carente, mas a capoeira vem mudando a vida de muitas crianças e jovens, fazendo-os alcançar o inimaginável. Num bairro onde muitos só conseguem enxergar violência, estamos trazendo de volta à população o prazer da cidadania, formando artistas, lutadores e professores”, reforça o professor.

A tia de Lorenzo, Jennifer Kellen Lopes de Jesus, 22 anos, foi quem levou o garoto para as primeiras aulas. “A mãe teve a ideia de colocá-lo para aprender um esporte e entendeu que a capoeira seria o mais adequado, inclusive para a formação dele”, conta ela.

A pouco mais de três quilômetros de distância dali, no Subúrbio 360, em Coutos, mais de 100 pessoas participam das aulas gratuitas, aprendendo noções básicas e movimentos do gingado. “A capoeiragem é uma ferramenta socioeducativa, que proporciona educação e disciplina, além de trabalhar o corpo e a mente das crianças. Eu sou muito grato por contribuir para a educação da população aqui no Subúrbio. É um trabalho que já faço há 27 anos”, revela com orgulho o mestre Zé Pequeno. As aulas por lá acontecem sempre de segunda a quinta-feira.

Premiação – Diversas iniciativas relacionadas à memória e transmissão de conhecimentos da capoeira recebem incentivos por meio de aporte de recursos públicos. Uma das principais ações realizadas na capital baiana nesse sentido é o prêmio Capoeira Viva, criado em 2017 pela Fundação Gregório de Mattos (FGM). Só com essa política de valorização, o órgão já destinou mais de R$1 milhão em investimentos.

Na última edição, ano passado, R$300 mil foram direcionados a 16 projetos, como grupos de capoeira que se apresentam em ruas, praças e quadras; atividades de formação (oficinas, documentários e livros) e de intercâmbio (batizados, rodas de conversa e encontros de mestres). Foram selecionadas propostas que valorizavam a preservação dos elementos tradicionais da capoeira, como expressão cultural genuinamente afrobrasileira e que são realizadas em diferentes áreas de Salvador, como Parque da Cidade (Itaigara), Itapuã, no Nordeste de Amaralina, no Mercado São Miguel (Baixa de Sapateiros), Terreiro de Jesus (Pelourinho) e Campo Grande.

“O prêmio é uma iniciativa que mobiliza toda a cadeia cultural, assim como todos os agentes envolvidos com o saber fazer da capoeira. Uma das edições do Capoeira Viva, inclusive, foi voltada para as escolas municipais de Salvador”, conta o gerente de Patrimônio Cultural da FGM, Vagner Rocha.

Antes do prêmio ser instituído, entre 2014 e 2015, a fundação realizou um cadastramento da capoeira em Salvador. O objetivo foi de construir uma base de dados do segmento, servindo de fonte de pesquisa para estudiosos e de subsídio para a implementação de políticas públicas, voltadas à manifestação cultural.

Origem e legado – Arte-marcial, esporte, dança, música. A capoeira é uma manifestação cultural multifacetada, sendo caracterizada pela gestualidade corporal e sonoridade executada por um conjunto de instrumentos musicais (berimbaus, pandeiros, reco-reco, agogô e tambor), que traduzem cantigas em forma de corridos e ladainhas.

Historiador e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, Josivaldo Oliveira explica que a capoeira passou por processos de evolução, sendo uma prática cultural que sintetiza elementos linguísticos e estéticos de vários grupos africanos, os quais foram trazidos para trabalho escravo no Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Em terras brasileiras, a expressão incorporou ainda elementos dos povos originários (indígenas) e colonos europeus, tornando seu significado mais complexo.

A expressão, como conhecemos, se constituiu entre o século XVIII e XIX, quando homens e mulheres escravizados praticavam seus movimentos nos terreiros das fazendas e vias públicas das vilas, com o intuito de entretenimento. Entretanto, em momentos de necessidade, as habilidades corporais ganhavam outra conotação, para reagir contra toda e qualquer ameaça.

“Era corriqueiro um capoeira se defrontar com policiais e capitães do mato, em situações de tensão ou fuga do trabalho escravo. Por conta das habilidades corporais, logravam êxito. Por esta razão, as autoridades policiais e as próprias elites políticas procuraram controlar a capoeira, criminalizando-a”, relata o historiador.

Em 1890, a capoeira foi citada no Código Penal como crime, o que justificou encarceramento de muitos praticantes. Ao longo do século XX, a manifestação driblou a criminalização e ganhou status de esporte e cultura popular, alcançando no século XXI a condição de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (2008) e da Humanidade (2014).

“A capoeira reúne em termos de diversidade linguística e estética o que melhor representaria o Brasil, enquanto um país caracterizado por tamanha diversidade cultural. Ela não só canta o país em suas poesias orais, mas também em sua gestualidade corporal. Ou seja, a capoeira constitui uma leitura do que somos”, define o especialista.

Foto: Bruno Concha/Secom