Salvador: Roteiro de arte contemporânea invade ruas do Comércio

Uma infinidade de cores e formas de todo tipo invadiu o histórico bairro do Comércio para celebrar com vida, arte e religiosidade a chegada do novo ano. Paredes grafitadas, postes, bancos, asfalto, chão e calçadas inteiras servem de tela para os artistas participantes do RUA – Roteiro Urbano de Arte, projeto da Fundação Gregório de Mattos (FGM), vinculada à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult). A iniciativa foi entregue em cerimônia simbólica nesta sexta-feira (8), na Rua da Grécia, com a presença do prefeito Bruno Reis.

O objetivo é tornar o Comércio uma galeria a céu aberto, requalificando, enriquecendo e humanizando ainda mais o bairro. O projeto foi desenvolvido para o eixo de economia criativa do programa #vemprocentro, que visa transformar e dinamizar o centro de Salvador, sob a coordenação da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur).

Quem passa pela Rua da Grécia, Praça da Inglaterra, Rua dos Ourives, Rua Francisco Gonçalves, Plano Inclinado Gonçalves e Plano do Pilar pode conferir mostras de obras de arte ao ar livre. As avenidas da França e Estados Unidos, além das ruas Miguel Calmon e Conselheiro Dantas, receberam novos desenhos de grafite.

Bel Borba, Vinicius S.A, Zuarte, Iêda Oliveira, Lanussi Pasquali, Ray Vianna, Ayrson Heráclito e Bigod realizaram as homenagens em diálogo com o entorno arquitetônico e com os conceitos relacionados a oito artistas homenageados: Rubens Valentin, Mário Cravo, Reinaldo Eckenberger, Mestre Didi, Carybé, Joãozito, M.B.O e Faustino.

“Este é mais um projeto importante para cultura, arte e história de Salvador. Desde 2013, a Prefeitura vem fazendo um esforço para recuperar o Centro Histórico. São 40 iniciativas desenvolvidas aqui na região, em especial no Comércio. Diversas praças já foram revitalizadas, como a Cairu, Inglaterra, Marechal Deodoro (Mãozinhas), além dos arcos da Conceição, muralhas do frontispício. Trouxemos equipamentos importantes como Hub e ainda há outras iniciativas sendo executadas a exemplos do Polo de Economia Criativa, Casa da Música e arquivo da cidade. Os investimentos superam a casa de R$ 300 milhões”, destacou Bruno Reis.

O prefeito também lembrou sobre a estratégia da gestão em promover a reocupação do Comércio. As ações envolvem a centralização administrativa, com o remanejamento das sedes de órgão municipais, bem como um plano de habitação e negócios para reaproveitamento de imóveis antigos e abandonados.

Caminhos da arte – As interferências que conectam a Casa do Carnaval, na Cidade Alta, ao Doca 1 (Polo de Economia Criativa) – equipamento previsto para ser inaugurada em maio no Comércio – foram concebidas para ocupar os espaços em diálogo com o entorno arquitetônico e com os conceitos relacionados aos respectivos homenageados.

Para tanto, o RUA teve a construção de um projeto de iluminação próprio, pensado para compor cada obra de arte, assinado por Luciano Reis. Com curadoria de Daniel Rangel, o projeto é uma produção da FGM em parceria com a Sole Produções e que envolveu, também, diversos outros órgãos municipais.

“A arte que chega de forma inesperada, sem avisar ou pedir licença, surpreendendo e revirando nosso dia. Esta é a proposta do Projeto RUA: criar obras de arte que dialoguem com a cidade e seus moradores, que ressignifiquem espaços transformando o olhar que se tem sobre eles”, afirmou o presidente da FGM, Fernando Guerreiro.

Área 1 (Bel Borba homenageia Caribé) – É no Plano Inclinado Gonçalves que começa o RUA, com a instalação de Bel Borba. Trazendo uma série de murais na entrada superior do equipamento e placas instaladas nas paredes laterais, Borba homenageia o pintor nascido na Argentina, mas radicado na Bahia.

Borba revelau se sentir honrado de ter a possibilidade de estar ao lado dos artistas que participam do projeto que, para ele, ajuda a revitalizar o Centro de Salvador. “Quando vejo um ambiente, rua, prédio, repartição, qualquer instituição pública com a presença de uma obra de arte vejo sinal de vida inteligente. A arte ajuda a humanizar e inevitavelmente atrai visitação, o que faz com que venhamos a ocupar este lado da cidade, que é tão pitoresco”, confessou o artista.

A instalação criada para o projeto, chamada “Viva Páride Bernabó”, modifica a paisagem de um cartão postal – o Plano Inclinado Gonçalves – que conecta o Pelourinho com a Cidade Baixa.

“Viva Páride Bernabó” homenageia Carybé, cujo nome de batismo era Hector Julio Páride Bernabó (1911-1997). A relação entre Carybé e de Bel Borba vai além da questão de dividir uma temática comum – a baianidade – e se aproxima ainda na sutilidade como ambos formalizam suas obras.

Área 2 (Ayrson Heráclito homenageia Mestre Didi) – O segundo encontro que o RUA promove é do totem criado por Ayrson Heráclito para homenagear Mestre Didi, como era conhecido Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1917-2013). A escultura “Juntó” é uma referência ao segundo orixá das pessoas, que acompanha os orixás principais que regem as cabeças. Feliz por estar homenageando o Mestre Didi, Ayrson chama atenção para a importância histórica e econômica do bairro do Comércio.

“O RUA é um projeto fundamental de revitalização para a região, para o fluxo urbano da cidade, para a implantação de um modelo de arte humanizada. A ocupação deste espaço salvaguarda o patrimônio dos processos de arruinamento. Estou muito feliz em colaborar com minha arte para esse investimento de renovação do bairro do Comércio”, revelou o artista.

Área 3 (Ray Vianna homenageia Mário Cravo Júnior) – A próxima parada é numa encruzilhada onde Ray Vianna colocou Laroyê, sua escultura em fibra de vidro, com seis metros de altura, em uma representação de Exu. Laroyê homenageia o artista Mário Cravo Júnior (1923-2018), que foi um dos mais importantes escultores baianos e um grande forjador de “exus”.

“Optei por fazer uma representação de Exu – o orixá africano da comunicação e do movimento – tema que Mário tanto incorporou e representou tão bem em sua vida e obra, e dei o título de Laroyê, a saudação deste orixá. Com seis metros de altura é formada pelo encontro de três planos com diferentes formas sinuosas e longas pernas que permitem a circulação livremente no chão formando um grande tripé com 4,5 metros entre eles.

No centro forma-se um espaço vazado que torna possível a visão do outro lado através deste. Um lado é preto e o outro é vermelho. De cada lado que se olha se vê uma nova composição de forma e cores”, informou Vianna.

Área 4 (Lanussi Pasquali homenageia Joãozito) – O momento seguinte se dá a partir da intervenção artística Jardim para Alguns Silêncios, de Lanussi Pasquali, em homenagem a Joãozito, como era conhecido o artista plástico e cenógrafo João Pereira (1966-2017). A obra é formada por poemas vazados numa estrutura de ferro, que podem ser lidos no chão da Rua dos Ourives, a depender da incidência da luz.

“Tento trazer alguns elementos do que João pensava sobre as intervenções no bairro do Comércio, região que ele estudava desde os anos 1990. Nos seus dois últimos anos de vida, ele propôs transformar o local num distrito artístico, um bairro modelo em que práticas culturais, econômicas e sociais fossem justas e igualitárias e aplicadas paulatinamente”, revelou Lanussi. Ela ainda contou que Joãozito sonhou o Comércio como um lugar com residências para acolhimento de jovens artistas e novos produtores culturais e da própria população do entorno.

Área 5 (Iêda Oliveira homenageia M.B.O.) – Através de um jogo de amarelinha e de 15 cavalinhos de aço, Iêda Oliveira montou o Haras para M.B.O., uma instalação para que as pessoas reflitam sobre a presença da cultura popular em nosso dia a dia, e possam participar e interagir com as obras que estão na Praça da Inglaterra. A artista acredita que o projeto RUA requalifica o Comércio, bairro de extrema importância histórica para o desenvolvimento de Salvador e está especialmente feliz por poder homenagear seu pai, o artista naif Manoel Bittencourt de Oliveira (1930-2018).

Os cavalinhos já estão na vida de Iêda desde 2001 e são uma lembrança viva dos momentos de sua infância quando sua família ia em romaria até Milagres, na Chapada Diamantina. Nessas ocasiões, ela se deparava com a beleza dos cenários montados pelos fotógrafos ambulantes que ficavam à disposição nas praças para fotografar os romeiros.

“Me interesso muito por essa aproximação com a cultura popular. Faz parte das minhas raízes, das minhas vivências em Santo Antônio de Jesus, onde tive muitas experiências ligadas às festas populares. A ideia de homenagear M.B.O., meu pai, a pessoa mais importante na minha vida, grande articulador de me lançar no mundo para que eu pudesse realizar o sonho de ser artista, me deixa ainda mais feliz, uma felicidade que não consigo descrever. Ele está sempre comigo em todos os meus trabalhos. É uma conexão de amor, uma lembrança viva”, declarou.

Área 6 (Zuarte homenageia Reinaldo Eckenberger) – Ainda na Praça da Inglaterra, o projeto Maternos reúne um conjunto de cinco esculturas em fibra de vidro e resina poliéster que o artista plástico Zuarte Júnior criou homenageando o artista Reinaldo Eckenberger (1938-2017).

O Maternos é baseado na última fase de produção do artista nascido na Argentina, do que ele chamou de Esquitshofrenia – uma combinação das palavras Esquizofrenia e Kitsh, criando objetos híbridos, bibelôs estranhos, a partir da cerâmica e de objetos kitsch. Zuarte se apoia nessa carga do artista e na nossa cerâmica popular, como sustentáculo para as esculturas.

Tirando partido da atmosfera híbrida, edipiana, barroca e surreal, ingredientes do universo do artista Eckenberger, Maternos procurou manter a carga dramática, a insinuação sensual, o cômico e o lúdico, elementos preponderantes na obra de Eckenberger, assim como a figura da mãe e que inspirou o título do projeto. Como o argentino radicado na Bahia, Zuarte procurou dar nomes também humorados a cada uma das esculturas, como Mama Esfinge, Édipo em Cacarecos, Acendam as Cabeças, Santo e Espanto.

Área 7 (Vinícius S.A. homenageia Rubem Valentin) – Lâmpadas cheias de água simulam uma chuva suspensa no ar e convidam o público a uma interação lúdica. A exposição “Lágrimas de São Pedro” já passou pela Alemanha, EUA, capitais brasileiras como Recife, Curitiba, Brasília, Rio de Janeiro e, agora em Salvador, pode ser vista na Rua da Grécia.

“Proponho nesse trabalho a criação de um ambiente onde o espectador penetra, envolvendo-se espacialmente com a obra, possibilitando a interação entre arte e fruidor de maneira mais abrangente. Neste caso é como se tivéssemos o poder de pausar a chuva, uma chuva de gotas grandes, limpas, transparentes, leves e com isso poder contemplar sua beleza, seu poder, seu símbolo, sua necessidade”, afirmou Vinícius S.A.

Área 8 (Bigod e o Conexão Grafite) – Conectando todo o circuito RUA, o artista visual e grafiteiro Bigod criou o “Conexão Grafite” e espalhou por todo o trajeto grafites em postes, bancos, piquetes, em diálogo com todas as obras e seus conceitos dando a todo o caminho a ludicidade e gritando criatividade. “Eu e minha equipe demos uma volta pelo circuito e ficamos imaginando como podíamos fazer a ligação entre as obras de arte”, disse Bigod.

“Uma das ideias foram as linhas coloridas feitas no chão – os esticados – caraterística forte da pichação de Salvador, conhecida no Brasil inteiro”, explicou. Mas, além dos esticados, o que acabou acontecendo é que Bigod e sua equipe pintaram muitos “obstáculos” encontrados pela frente, como as caixas de luz que hoje têm a cara de uma carranca e… de Bob Esponja.

“Fomos transformando objetos em personagem de desenho, pegando obstáculos e colorindo pelo circuito, seguindo o fluxo e tentando dialogar com cada obra. Tivemos a preocupação de não deixar a ligação ficar desconexa. O que eu mais queria era que todos os artistas se destacassem, que as pessoas olhassem o caminho e seguissem as linhas coloridas. O grafite sempre tem este diálogo com a rua, seja nos muros, postes, caixa de lixo, ele tem sempre essa mobilidade”, complementou.

Foto: Betto Júnior/Secom