Ao debater a existência do corpo negro através das lutas, perdas e resistências cotidianas a obra levanta os limites do rompimento com a colinialidade
Idealizada pela feminista negra, produtora cultural e artista interdisciplinar, Sanara Rocha, a plataforma Futurismos Ladino Amefricanas (F.L.A) apresenta a obra A Mulher Sem Cabeça, uma performance-ensaio rito-musical dividida em dois experimentos audiovisuais: uma vídeo-performance intitulada Corpo Ebó, prenúncio para a ficção futurista e audiovisual A Mulher Sem Cabeça, a partir dos dias 10 e 20 de abril, respectivamente, no Youtube oficial do projeto (https://www.youtube.com/channel/UCjB8_JAp-F8hyvkwvRUVeog). Estrelada pela realizadora, ambas as apresentações debatem o corpo negro, feminino e as violências que, fruto do racismo, machismo e preconceitos, atravessam também o corpo da artista.
As performances que, não se complementam, nem dependem uma da outra, dizem de uma mesma poética e tecnologia de resistência e enfrentamento, ao se apoiarem em uma mesma imagem, o corpo poético negro-feminino, como a mais eficaz tecnologia de resistência à colonialidade, nesse experimento do ser em movimento.
Com referência no ebó, um rito de re-equilíbrio de energias internas e externas, de limpeza e fortalecimento da energia vital, Corpo Ebó representa a própria tecnologia de fuga frente a estruturas sólidas e opressivas, através da linguagem da dança. O binômio é também corpo-oferenda, a continuidade de lutas históricas, a representação de corpos que visam existir em sua integridade e completude, como movimento, dinâmica, ao deslocar estruturas sólidas do lugar, seja dançando ou desviando da captura delas, e poderá ser assistido a partir do dia 10 de abril.
Ao afrontar uma sociedade que ainda marginaliza as práticas afro-religiosas, o ebó é um rito subversivo, ocupação urbana, corpo-resistência, tecnologia de cura anticolonial, corpo-feitiço, corpo- trabalho contra os males coloniais, corpo que quer ser visto na encruzilhada, exibindo a sua fartura, vinho, charuto, carne, farofa, abundância à meia noite para servir de alimento aos corpos em trânsito ou como pistas de rotas de fuga coloniais próximas. É nesse sentido que a performance se torna um mantra e convida ao transe-ritual que provoca vertigem no racismo e busca reprogramar a mente de quem o assiste.
“O corpo ebó é esse corpo deixado de tocaia nas encruzilhadas para afrontar o sistema com a desorganização de uma ordem construída para violentar a nós, pessoas não brancas e não normativas, de muitas maneiras. Re-existo como força desviante de possíveis capturas ou normas e transformo as minhas lutas contra a estrutura racista em um corpo-ginga, em um corpo-ebó contra-genocídios”, afirma Sanara Rocha.
Já A Mulher Sem Cabeça, uma ficção autobiográfica da artista, é uma fábula em realismo fantástico que se apoia na linguagem da performance audiovisual para contar uma história ficcional-autobiográfica, a partir de 20 de abril. Na trama, o alter-ego de Sanara busca meios de romper com os limites e violências psíquicas impostas pela colonialidade para um corpo negro-feminino, através de tecnologias e saberes ancestrais que lhe dão o sustento para experimentar novos processos de reinvenções de si.
Ao levantar as mortes, perdas, buscas e encontros cotidianos da multi-artista frente a sociedade brasileira que é fortemente machista e racista, a obra traz a história de uma mulher que ao acordar um dia sem cabeça, decide procurar meios fantásticos para reinventá-la e reinventar a si mesma, carregando um título que também diz desse rosto negro-feminino que a performer sustenta sobre seus ombros.
Temas como o que é mulher negra no Brasil, as expectativas para esse corpo e sua performance social, importância e prioridades dadas as complexidades e os atravessamentos que envolvem um corpo negro-feminino em diáspora, são presentes no roteiro o debate da máscara da “mulher negra universal”, mecanismo que dificulta o reconhecimento e compreensão de quem essas pessoas são e suas raízes diante de uma cabeça, um orí, que é transformado em domínio público, histórico e comunitário pela colinialidade.
A perda da cabeça, então, se lança como um encontro, busca e reinvenção de uma mulher negra nova, que subverte as categorias identitárias que a branquitude colonial a obrigou a vestir, em uma restituição da fluidez, da possibilidade de ser algo transgressor como um corpo-orí-tambor e como Sanara percebe que somente através da criação poética pode encontrar meios para imaginar o seu futuro.
“Perdi a minha cabeça muitas vezes durante a minha vida, mas sem dúvidas, depois de tantas violências acumuladas e silenciadas em mim, (perder minha mãe desencadeou isso, acho que explico isso na entrevista. Minha mãe tinha o dom de conseguir acalmar muitos processos dentro de mim, e perder ela foi a gota d’água para minha morte e renascimento.) não me contive, me permitir ruir, perder a minha cabeça de vez para achar uma nova, um novo orí, nessa descolonização da minha imaginação para sobreviver em uma sociedade em que tudo opera para que mulheres como eu não existam, não escapem, não se reinventem no reencontro com seu corpo” completa Sanara.
As performances são as últimas ações da plataforma F.L.A, que abriu convocatória para artistas pretes e indígenas e a subsequente exposição online Abre O Olho – Jikula Ô Messu e, em seguida, lançou a primeira edição da sua revista online com fotografias e escritas, seguida de duas lives bate-papos nos dias 24 e 25 de março,também de artistas pretes e indígenas.
O projeto é contemplado pelo Prêmio Anselmo Serrat Linguagens Artísticas, da Fundação Gregório de Matos, Prefeitura de Salvador, por meio da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, com recursos oriundos da Secretaria Especial da Cultura, Ministério do Turismo, Governo Federal.
Foto:Karol Machado