O julgamento do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que pode tornar Jair Bolsonaro (PL) inelegível deve levar em consideração todo o contexto golpista ligado ao ex-presidente e não apenas a reunião na qual ele difundiu mentiras a embaixadores e motivou a ação protocolada pelo PDT.
O próprio relator do processo, o corregedor-geral eleitoral Benedito Gonçalves, indicou em suas decisões que adotará esse tipo de entendimento e tem contado com respaldo da maioria dos colegas.
A avaliação de observadores da corte é que o processo movido pelo PDT será analisado a partir do próximo dia 22 dentro de um contexto de reiteradas declarações e ações de Bolsonaro contra o sistema eleitoral brasileiro e contra ministros de tribunais superiores.
Assim, a tendência é que a corte eleitoral vá na contramão do entendimento fixado em 2017 ao rejeitar a cassação da chapa de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB). Na ocasião o TSE decidiu por maioria desconsiderar novas provas apresentadas após a ação ser protocolada. Essas provas apontavam outras suspeitas, relacionadas a caixa dois, contra os dois políticos.
O entendimento majoritário à época foi de que uma Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral), tipo de ação que foi proposta contra Bolsonaro, trata de fatos específicos e não admite que pontos considerados alheios ao processo sejam usados para julgar quem é alvo dela. Na época, o tribunal tinha outra formação e contava, inclusive, com a presença do atual advogado eleitoral de Bolsonaro, Tarcísio Vieira de Carvalho.
Agora, com uma nova composição, o TSE dá indícios de que fará uma avaliação no sentido oposto. Isso ficou claro, por exemplo, no momento em que Benedito aceitou incluir no processo a minuta do decreto de golpe encontrada pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, revelada pela Folha em 12 de janeiro. Naquele momento, a ação já estava na corte eleitoral.
O corregedor tem apontado que são necessários ao caso “elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados [na ação]” e que apontem a gravidade da conduta de Bolsonaro. Também cita “circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório”.
Benedito levou suas decisões para aval dos demais ministros da corte, que têm concordado com ele.
A visão do ministro também está presente em manifestações do Ministério Público Eleitoral sobre o episódio dos embaixadores. O órgão já viu nas atitudes de Bolsonaro “um conjunto de assertivas que compõe o propósito de desacreditar a legitimidade do sistema de votação digital” empregado desde 1996 no país.
Desde o início, o tribunal tem entendido que a reunião com os embaixadores —na qual o ex-presidente repetiu teorias da conspiração sobre urnas eletrônicas, desacreditou o sistema eleitoral, promoveu ameaças golpistas e atacou ministros do STF (Supremo Tribunal Federal)— não pode ser considerada um fato isolado.
O encontro com representantes de outros países estaria intimamente ligado a uma tentativa de desequilibrar o sistema eleitoral repetida pelo presidente em diversas ocasiões, que culminou nos ataques golpistas de 8 de janeiro.
“A Aije tem um objeto, e quando a ação é ajuizada esse objeto não pode ser modificado, essa é uma tese que é muito conhecida”, diz o doutor em direito público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e professor de direito constitucional Ademar Borges.
No ano passado, Borges e o professor de direito penal Alaor Leite elaboraram um parecer que previa a possibilidade de punição de Bolsonaro, a pedido de entidades que defendem os direitos humanos —a Comissão Arns, a Artigo 19 e a Conectas. Esse documento foi juntado a uma ação apresentada em 2022 pelo Ministério Público Eleitoral que levou o ex-presidente a ser multado.
“Mas essa ação [contra Bolsonaro] tem uma peculiaridade. Tanto na representação do Ministério Público Eleitoral quanto nessa Aije ajuizada depois das eleições pelo PDT se alega que a reunião com os embaixadores é fruto de uma consequência, uma consolidação de uma sequência de ataques que já vinha acontecendo ao longo dos meses anteriores e que havia se intensificado”, afirma.
“Tanto na representação quanto naquela ação o que se alegou é que havia uma estratégia ampla, sistêmica, de produção e disseminação de desinformação contra o processo eleitoral, e inclusive para fins autoritários.”
Segundo ele, a visão que consta no processo é de que essa campanha de desinformação tinha como vetor central Bolsonaro, que era presidente da República e candidato à reeleição, e pretendia fazer com que uma parcela da população brasileira entendesse que as eleições haviam sido fraudadas e que o Judiciário estava envolvido em uma teoria da conspiração para favorecer Lula (PT), seu adversário.
Um ponto central do processo que será julgado contra Bolsonaro deve ser a desinformação contra a integridade do processo eleitoral, como aconteceu no processo que levou à cassação o deputado estadual Fernando Francischini, à época no PSL-PR, em 2021.
Francischini afirmou nas redes sociais, sem provas, que urnas foram adulteradas para impedir a eleição de Bolsonaro em 2018.
No caso de Bolsonaro, o TSE deve centrar suas discussões menos no desequilíbrio causado pelo ex-presidente à competição eleitoral, como acontece mais tradicionalmente em julgamentos sobre abuso de poder político ou econômico pela corte, e mais sobre a gravidade do alcance da campanha de desinformação conduzida pelo ex-presidente.
“Nos casos tradicionais de abuso de poder, os requisitos que o tribunal sempre investigou para saber se o ilícito era grave o suficiente para aplicar uma eventual cassação ou inelegibilidade estavam ligados à gravidade quantitativa e qualitativa da agressão à igualdade de chances [entre candidatos]”, afirma Ademar Borges.
Vera Chemim, mestre em direito público pela FGV, critica o fato de o TSE ter aceitado a inclusão da minuta do golpe no processo e ampliado o escopo inicial da ação.
Ela menciona o artigo do Código de Processo Civil que prevê que é possível “alterar o pedido e a causa de pedir” até o saneamento do processo caso haja “consentimento do réu”.
“Lembro do caso da Dilma. Lá foi levada em consideração a chamada estabilização da demanda e a não inclusão de fatos novos no processo. Caso seguissem essa jurisprudência, não haveria como juntar essa minuta do golpe ao caso, até porque não se tem elementos para comprovar se realmente ele [Bolsonaro] teria aceitado essa minuta, se teria conhecimento ou não. Infelizmente, há um viés político ideológico, não há dúvida sobre isso, houve uma extrapolação”, diz.
José Marques e Matheus Teixeira/Folhapress